Já devem restar no nosso planeta poucos metros quadrados virgens da presença humana: a “nationalgeographicacão” do mundo parece estar igualmente em marcha na música. Tudo se reedita, nada permanece encerrado no passado: psicadelismo iraniano, folk grego, electrónica romena. A derradeira “selva” intocada pelos exploradores discográficos era provavelmente a new age, o momento em que o pensamento hippie deu origem a uma indústria feita de gurus de meditação, lojas de cristais curativos e cassetes de produção caseira de música que aspirava a ser uma espécie de incenso para os ouvidos. Brian Eno percebeu aí uma ligação à sua ideia de “ambient music” e editou o músico nova-iorquino Laraaji nos anos 80. Com o regresso em força da new age, a música de Laraaji foi recuperada pela All Saints, em primeiro lugar, com a edição em 2013 de Celestial Music 1978-2011 e Two Sides of Laraaji e pela Stones Throw/Leaving Records, depois, com a tripla cassete All In One Peace. A californiana Leaving Records prepara, entretanto, mais algumas recuperações para o presente de cassetes míticas lançadas por Laraaji nos anos 80. Mas o reencontro de Laraaji com o agora – que aliás o levou a colaborar com Blues Control e, já este ano, com Sun Araw – aconteceu em 2010 quando a londrina Soul Jazz relançou o trabalho remoto de 1978 Celestial Vibration originalmente creditado a Edward Larry Gordon, verdadeiro nome de Laraaji.
«Eu estava a par de Albert Ayler. As suas longas gravações cósmicas influenciaram-me a seguir a direcção da música curativa cósmica», explicou então Edward Larry Gordon. «Vi Sun Ra e a sua Arkestra em Nova Iorque durante os finais dos anos 70. Também conheci Alice Coltrane e a sua harpa e música de órgão mexeram profundamente comigo – tal como a sua devoção espiritual. Algum do meu trabalho na cítara pode muito bem ser inspirado pela exposição às suas gravações de harpa e canto. Também descobri na música gravada de John Coltrane uma profunda força de emoção cósmica». Estas declarações de Larry Gordon surgiram a propósito da reedição de Celestial Vibration, uma gravação de 1978 que originalmente foi alvo de uma limitadíssima prensagem privada que, aliás, terá estado na base da “descoberta” de Brian Eno. Celestial Vibration consiste de duas longas peças – «All Pervading» e «Bethlehem» – de pouco mais de 24 minutos (a simetria deve-se, certamente, à exploração da capacidade máxima do vinil, uma vez que ambos os trabalhos consistem de edições de improvisos mais longos) onde a cítara (“zither” em inglês, não confundir com a sitar indiana) modificada electronicamente surge como a base de um edifício sonoro muito particular. A kalimba africana, o sintetizador e leves toques de percussão completam a paleta de sons de que se socorre Edward Larry Gordon neste seminal álbum que pode ser encarado como uma espécie de elo perdido entre o lado mais espiritual do jazz e a música explorada por Brian Eno na série Ambient produzida para a EG Records. Edward assinou mesmo o terceiro volume dessa série, como Laraaji, logo em 1980 – Day of Radiance é hoje visto como um clássico do género, embora acrescente à equação de Celestial Vibration uma clara influência das experiências minimais de gente como Steve Reich. Day Of Radiance foi, entretanto, reeditado o ano passado pela Glitterbeat.
Nascido em Filadélfia em 1943, Edward Larry Gordon é um produto da abertura de consciências da década de 60. Educado musicalmente desde muito cedo, no final dos anos 60 Larry Gordon era teclista num grupo de jazz funk de Brooklyn, os Winds of Change. A meditação surgiu depois na década de 70, e com ela uma demanda musical diferente que conduziu este músico até à cítara. Este instrumento tem origens africanas, mas a sua forma actual deve-se a uma evolução europeia, sobretudo na zona dos Alpes. Nas mãos de Edward Larry Gordon a cítara – electrificada, amplificada e percutida com diversas “ferramentas” – potenciou a sua riqueza harmónica e transformou-se num instrumento de diálogo com o espírito. À cítara, Larry Gordon acrescenta igualmente o sintetizador e a kalimba (o “piano de polegares” africano que na tradição angolana é conhecido como quissange), factos que transformam os seus recursos instrumentais numa interessante metáfora – a sua música coloca-se assim entre a Europa, África e o futuro, entre o jazz, uma tradição erudita e uma visão cósmica mais ampla e intemporal.
Em Celestial Vibration, como na sua restante obra gravada, a música assume-se como uma plataforma de elevação espiritual, nesse sentido posicionando-se como continuação lógica do trabalho de outros navegantes do espírito como Alice Coltrane. A forma é livre e a evolução estrutural muito fluida, circular e hipnótica. Natural pois a aproximação entre Edward Larry Gordon e músicos como Jon Hassell, Harold Budd e Brian Eno – qualquer um deles um explorador de pleno direito das regiões mais remotas e tranquilas da música. Parte desta música acabou por evoluir para o plano da new age, campo que actualmente motiva sérias investigações do passado e a recuperação de gente como Ariel Kalma ou J.D. Emmanuel e Iasos.
Em palco, Laraaji oferece uma amostra viva da meditação feita som, com uma entrega hipnótica e emocional de uma envolvente cascata de notas e vibrações que efectivamente transportam quem a ouve para um sítio mais elevado, melhor, mais puro. Nesse sentido, um concerto de Laraaji é igualmente um ritual de ascensão, de purificação, de limpeza.
Esta produção ZDB acontecerá no maravilhoso Espaço Mouraria, envolvência mais do que adequada para uma apresentação tão singular. RMA