prefácio
foi através de sua filha que recebi pela primeira vez a notícia:
s…… está com câncer.
(ela sempre se referia ao pai única e exclusivamente por seu primeiro nome)
devido a problemas de circulação e intensas tromboses nas pernas, os médicos optaram por amputar seus dois pés.
tudo indica que vão amputá-los amanhã pela manhã,
mas pode ser que seja ainda hoje depois do meio-dia.
eles ainda não sabem direito.
na semana seguinte, ela me ligou numa videochamada enquanto visitava o pai no hospital.
s.a. parecia sorrir por detrás de uma máscara enquanto pedia para que a filha capturasse na câmera a dança de suas pernas recém decepadas.
essa foi a a primeira vez que ouvi s.a. fazer referência a alguma figura da cena artística européia:
“sinto falta numa hora dessas de alguém como o bernhardt ou o roth. eles seriam o tipo da gente que viria até aqui e falaria: e aí, rapaz? por onde seus pés têm andado?”
conheci s.a. quando estive na alemanha pela primeira vez em meados de 2015 para participar de uma exposição com outros artistas brasileiros.
um amigo, que nada tinha a ver com arte, havia anotado num papel uma série confusa de coordenadas de como localizar seu prédio na longa e desolada karl marx strasse em berlim.
ele não usa telefone. o único jeito é ir lá e bater na porta dele. se você der sorte, ele vai te atender. ele é a melhor pessoa com quem você pode falar sobre essas correlações entre saturno e binah.
naquela época eu ainda me recuperava de um grave acidente em que tive a perna esquerda esmagada entre um carro e um poste numa rua de são paulo.
quando finalmente encontrei s.a. depois de três tentativas fracassadas no interfone de seu prédio, ele acharia graça no fato de que, apesar de ser ele o velho, era eu quem usava uma bengala para andar.
enquanto uma mão empunha o cajado, a outra deve suporta a luz oleosa da unção.
a cabeça deve ter seus cachos urdidos em fios de prata.
sob seus pés, os crânios esmagados de todos primogênitos eternamente degolados em nome de laio.
no decorrer dos próximos anos, a despeito de seu caráter errático, nossas trocas se revelariam sempre intensas e frutuosas. sem que, todavia, isso jamais conferisse a mim qualquer acesso aos detalhes da vida pessoal de s.a.
na maior parte do tempo, havia ali um tipo de acordo tácito que fazia com que nosso contato se restringisse exclusivamente ao escopo místico-prático de minhas dúvidas.
daí minha total surpresa quando descobri naquela chamada hospitalar que s.a., já octagenário àquela altura, tinha travado contato direto com gente como peter handke, arno schmidt, hanne darboven, thomas schmidt, dieter roth, barth hugues, robert jasper grootveld, yves klein, timm ulrichs e várias outras figuras notórias da vanguarda artística européia da segunda metade do século XX.
foi nesse contexto que ouvi pela primeira vez s.a. mencionar o nome de stanley brouwn.
conheci s.b. em dusseldorf quando o pessoal do zero lançou aquele balão no ar.
ele estava lá no meio de todo mundo.
ele estava de sobretudo.
tenho a impressão de que todas as vezes que vi s.b., ele estava de sobretudo, mesmo no calor.
se você olhar a foto mais famosa da ação do balão, aquela vista de cima, você poderá me ver lá no meio da multidão.
s.b. também estava lá, mas não dá pra ver ele na foto.
a partir daí, em conversas posteriores, tomei sempre o cuidado de ter à mão uma folha em branco e uma caneta para tomar notas (gravar com ou sem permissão qualquer uma daquelas chamadas era algo totalmente fora de cogitação naquele contexto).
foi deste modo que, em meio a uma miríade de assuntos de todo tipo, terminei por compor uma longa série de apontamentos sobre as peculiares considerações de s.a. sobre a obra e trajetória artística de s.b. (muitas foram também suas digressões sobre outros temas, incluindo os desenhos mágicos de franz bardon, as armadilhas místicas do liber al, a auto-trepanação de hugues, o engajamento revolucionário de eliphas levi, etc etc)
ainda durante a pandemia, decidi começar a trabalhar naquelas notas de modo a recompor algo de sua estrutura dialógica original.
tempos depois, sempre através do celular de sua filha, li para s.a. algumas das primeiras versões reconstituídas de nossas conversas.
ele me deu então diversas indicações de como reformular sua fala de modo a torná-la mais fiel ao espírito “místico, mágico e maçante” de nossos intercursos.
será uma perda de tempo se você colocar aí só o que falei ou deixei de falar sobre s.b.
melhor seria se vocês misturasse tudo o que eu disse com as baboseiras místicas e políticas sobre as quais sempre termino falando.
sem que eu soubesse, nosso diálogo sobre a edição dessas falas se tornaria nossa última e derradeira conversa.
antes de morrer, s. a. pediu a filha que me dissesse que, por razões místicas e guemátricas, preferia ser identificado nessas entrevistas somente pelas letras iniciais de seu nome.
toda a presente pesquisa sobre s.b. toma por base o conteúdo reconstituído e reeditado desses diálogos hospitalares.