Estimados camaradas, após o retumbante sucesso da iteração de Nova York de Animal Farm apresentada no espaço 99 Canal no princípio deste ano – a exposição individual de João Maria Gusmão em 16 mm, enfim abrirá na Galeria Zé dos Bois em Lisboa, com curadoria de Marco Bene, no dia 20 de maio.
Animal Farm convida o observador a participar numa odisseia visual exaltada pelo consolo pastoral, pelos menestréis animistas e pelos enigmas metafísicos – fantasmas, duendes e ogros – oferecendo vislumbres fugazes de uma alteridade existente entre a technê e a poiesis, o humano e o não-humano, o noturno e o diurno. Através de mais de quinze novas projeções em película de 16 mm, somos desafiados a explorar as mais recentes avanços de uma investigação duradoura sobre meios analógicos e conceitos analógicos. Uma jornada rumo a um distanciamento ecológico da paisagem rural extractivista.
Para esta empreitada, o artista português propõe uma abordagem distinta à sua arte, moldando as instâncias de contemplação estética e ancorando-as à embriaguez festiva do Bairro Alto de Lisboa. Assim, nesta exposição, podemos fugir do júbilo captivante e incessante desse pródigo galinheiro, para sermos atormentados por outra granja, onde a domesticação do fogo produz imagens em movimento; a domesticação da história produz mitos; e a domesticação de todos os tipos de figuras produz fantasmas.
Ao mesmo tempo que se pode comparar Animal Farm à fábula de Orwell, Gusmão desenrola simultaneamente um enigma estruturalista: a natureza espectral do próprio meio cinematográfico, apontando-nos para uma fenomenologia “estranha”; uma espécie de assombração – o estudo naturalista do que se situa entre o ser e o não-ser entre as criaturas domesticadas e selvagens do rancho – uma ontologia vicária!
Em Animal Farm, Gusmão submerge-nos no seu mundo idiossincrático de explorações e opiniões para-históricas, para-científicas e para-filosóficas, intrincadamente entrelaçadas em cada fita de celuloide.
Nas salas iluminadas apenas por projeções de cinema, pode-se reparar (ou não) numa montanha do fermento predileto da Branca de Neve; no cantar mudo de um Galo ao amanhecer, que assinala o início de mais um dia; numa Cassete fantasma que ecoa os sons de sua própria morte; num bando de patos a dançar a valsa numa natureza morta intitulada Paisagem com Barco e Rio; em Metade de um cavalo; numa humilde propriedade dedicada à exploração do sol, ou seja, numa Quinta solar; em Espuma fermentada, uma gosma enigmática reminiscente de um produto lácteo, ladeada por Vacas achatadas fazem bom iogurte, um relato vívido de bovinos geneticamente modificados com encefalopatia espongiforme – bestial!; numa coleção de quartos de dormir do purgatório; neste que vos fala, imerso numa mise en abyme de ressentimentos de partilhas de herança e de direitos de nascença, olhando com nostalgia para O Castelo do Meu Tio, outrora do meu avô e agora a casa de campo do meu primo; na Noite americana, uma saudação cinematográfica ao Império da Luz de Magritte; numa Obra de mostarda de estragão imbuída de conotações escatológicas; num Girassol ao lusque-fusque varrido por uma tempestade nuclear; num filme de animação, estilo Disney, mas oriental e dobrado 3 vezes por razões paradoxais; na Maravilhosa fazenda de abóboras; na Pedra de mijo de Mozart, o menir outrora marcado pelo próprio Amadeus com a gasolina de uma nave espacial da idade da pedra.
A ciência é ficção!
E, assim, o termo cunhado por Derrida ao proferir uma palestra intitulada “O animal que, portanto, eu sou” reverbera mais uma vez: zoopoética!
Avante, camaradas! Viva o moinho de vento! Viva a Quinta dos Animais!
George Orwell
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Este projecto é generosamente apoiado pela República Portuguesa – Cultura | DGARTES – Direção-Geral das Artes, FLAD – Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, Universidade Católica, Escola das Artes, CITAR Centro de Investigacão em Ciência e Tecnologia das Artes, Porto. Esta exposição foi produzida pela Galeria Zé dos Bois (ZDB), Lisboa.