Entidade continuamente mística e inclassificável da música transgressora mais beatífica feita por estes lados, o duo de Marta e Alves von Calhau tem vindo a criar o seu próprio universo, alheio a quase tudo aquilo que conhecemos, com a verdade, o nervo e o confronto lúdico dos mais sagazes. Dos primórdios submergidos no quitanço da mais variada maquinaria, foram depurando esse linguajar intrigante até fazerem erigir uma ilha onde a desconstrução herdeira do dadaísmo e do bruitisme se encontra com formas mais resolutas, mas nem por isso menos desafiantes. Com o canto de Marta von Calhau a assumir um papel basilar, os detritos electrónicos que vinham sendo explorados enredavam-se num arco narrativo informado pelo surrealismo, a Nico de Desertshore e os cantares do Portugal profundo, que teve um primeiro registo perene para lá da dimensão performativa em Quadrologia Pentacónica de 2011 e continuidade em Magneto Luminoso Condutor Sombra de 2013.
Encarando esse contínuo, mesmo quando cada peça surge enquanto acto único, Ú com edição na sempre premente KRAAK e que serve de contexto para esta – sempre celebrada – actuação, trata-se de um disco mais hermético e insular. Laminando as experiências cancioneiras até ao seu intímo, sobra uma electrónica esparsa e langorosa sobre a qual surge uma voz cada vez mais versátil e confiante a entoar mantras feitos de jogos de palavras com tanto de lúdico como de onírico. Podemos até chamar-lhes hinos, no sentido mais litúrgico do termo, feitos de contenção e hipnose branda, que ao invés de um clamor impositivo, se esgueiram subtil e pacientemente num ruminar devoto. Quase como se as magickal arts dos Throbbing Gristle encontrassem voz no Ghedália Tazartès para daí gravitarem num campo idiossincrático onde esta e outras comparações caem por terra. Novo documento essencial de um work in progress singular que temos vindo a acompanhar sempre com surpresa e fascínio, e que ganhará nesta noite novos significados e significantes. BS