É difícil não elaborar um balanço justo do passado recente da música nacional sem recordar o período dourado que se viveu em plena alvorada do milénio. Uma série de manifestações assentes numa filosofia livre de convenções estéticas, aproveitando o caminho da nova experimentação e iluminadas pelo desígnio do ‘fazer acontecer’. Editoras, eventos, e claro, um leque de artistas de diversas origens foram as facetas mais visíveis dessa geração.
Os CAVEIRA foram então um dos vértices fortes deste quadro (juntamente com Loosers ou com os saudosos Fish & Sheep), responsáveis máximos por uma encarnação extra-física do rock, implosiva e inédita, tal o desconhecíamos até então no panorama português. Com o disco de estreia ‘África’ (ainda hoje um pujante documento), escutou-se como do caos e da fúria poderiam nascer torrentes de groove e de massa sónica quebrada, mastigada e regurgitada. Ecos díspares de gente como Dead C, Royal Trux ou Ash Ra Tempel fizeram-se pairar sem que a música, contudo, ficasse refém dessas referências; na verdade, a combustão instantânea do trio lisboeta sempre teve uma genética tão bastarda quanto mestiça. E ao vivo, a cauda do cometa ainda se fazia mais incendiária com passagens memoráveis na Caixa Económica Operária, Lux ou ZDB. Certa vez, quando questionados sobre a sua possível definição, os próprios construíram uma brilhante imagem capsulada nos instantes finais de um concerto rock, em que o êxtase natural do momento se funde num mar de feedback, para além dos limites do concreto. Mas a existência dos CAVEIRA tem sido também pautada por pequenas mudanças de alinhamento. Primeiro com a saída de Rita Vozone, depois pela breve transformação a duo, para uma seguinte pausa que viria a rachar-se apenas em finais de 2012. Foi nesse período, na Galeria Zé dos Bois, que se assistiu a um inovador capítulo na banda através da entrada de outras pessoas e, consequentemente, de novas ideias e abordagens. A Pedro Gomes juntaram-se assim as cordas mutantes de André Abel (Aquaparque e Tropa Macaca) e as baquetas fulminantes de um prodígio chamado Gabriel Ferrandini (RED Trio, ACRE, Rodrigo Amado e tantos outros).Para muitos, e com a devida justiça, tratou-se de uma das melhores actuações desse ano numa ocasião de (re)encontro quase histórico. Entre tantas novidades, ressaltou um som assumidamente híbrido, recorrendo a uma multiplicidade impressionante de texturas e tons, digno de quem possui um léxico enriquecido à conta do próprio calo. Enquanto não surge registo material do grupo, resta a oportunidade (e não abundam) de os ver e ouvir em palco. Arena de exorcizações maiores onde seremos todos nobres testemunhas da passagem de mais um tufão.NA
