Senhora de um percurso sinuoso, marcado por rupturas e desvios, Dawn Richard tem deixado de forma discreta, mas cada vez mais contundente, uma marca indelével em muito do R&B mais vital ao longo desta última década. Tendo dado os seus primeiros passos nas Danity Kane – girl band nascida no programa Making the Band capitaneado por Sean “Puff Daddy’ Combs -, é principalmente após o primeiro colapso destas que Dawn começa a revelar uma persona tão vincada quanto fascinante. Ainda sobre a alçada de Combs e, enquanto metade das Dirty Money, contribui de forma decisiva para fazer de Last Train to Paris um dos marcos fulcrais do género neste século, numa obra prima ainda demasiado arredada do imaginário colectivo, com continuidade na muito e recomendável mixtape LoveLove vs. HateLove e quase simultaneamente numa primeira e muito promissora investida a solo por via de The Prelude to A Tell Tale Heart.
Apesar do backup da editora Bad Boy de Combs, e naquilo que poderá ser visto como uma afirmação de verdadeira independência criativa e visão absoluta, Dawn atira-se destemida numa demanda idiossincrática, livre de eventuais espartilhos contratuais ou estéticos, que tem em Armor On o seu primeiro acesso de brilhantismo. Deixando uma marca autoral plena, Armor On palmilha novos mundos dentro do R&B sem nunca se perder por desvios alienantes, com canções como Black Lipstick ou Changes a habitarem com uma segurança inusitada naquele limbo entre a composição de melodias memoráveis e o desafio da transgressão com toda a elegância, sensualidade e frescura dos espíritos inquietos.
Uma simbiose imaculada entre o produtor Druski e Dawn, que se recolhia num mundo fantasioso, pejado de alusões oníricas e que teria seguimento com a edição do colossal Goldenheart. Obra de uma coerência interna inabalável, num arco narrativo quase conceptual que consegue aglutinar tudo de bom que a prog alguma fez pela pop, Goldenheart poderá, em última instância, não ser tão memorável quanto Armor On, mas deixou clara a criatividade inesgotável que viria a ser escancarada de forma sublime no fundamental Blackheart. Concebido num período particularmente turbulento, por entre a dissolução da sua relação com Druski e uma segunda e falhada tentativa de reactivação das Danity Kane, Blackheart dá continuidade a todo esse processo de libertação, reflectindo esse mesmo espaço temporal num álbum tão expansivo nas direcções que toma quanto tenaz no modo como as faz convergir.
Sentido o pulso às mais diversas músicas, numa cartografia aparentemente dispersa, unificada com a benção da voz de Dawn, Blackheart vai repercutindo essa mesma voz nas mais diversas formas, conduzindo as canções por entre o fervilhar de ritmos e sons que ainda por definir que pairam sobre tudo isto. Em sentido contrário ao das propostas irrelevantes que têm sido anunciadas como revitalizadoras do R&B, Blackheart assume o extravasar fronteiriço de dentro para fora do género, com canções brilhantes como Aderall Sold (Outerlude), Swim Free ou Change a criarem todo um universo novo, num assomo de samples alucinatórios, ritmos esquivos e melodias maiores do que a vida, num todo sem paralelo actual.
Mais do que projectar o futuro, Blackheart é o sonho do presente, tão facilmente alinhado com a Björk com ambições pop de Post ou Medúlla como com Beyoncé, num espaço habitualmente inabitado, e em acto contínuo com uma certa noção de avant pop que tinha em figuras como a Kate Bush ou o Peter Gabriel dos 80’s alguns dos seus visionários. Equilibrando-se de igual modo entre uma aceitação crítica e pública merecidamente entusiástica chegou ao top de vendas do itunes – um feito tratando-se um disco na sombra de qualquer major – e recolheu os mais rasgados elogios em inúmeras publicações, acabando por encerrar o ano no primeiro lugar da lista dos melhores álbuns da Fact, e aparecendo também na Spin, Rolling Stone ou Tiny Mix Tapes.
Chegando a Portugal numa altura que a própria denomina de The Red Era, e no seguimento de actuações em espaços tão ilustres como o MoMA, é também aguardado com a maior expectativa o terceiro e último (?) tomo da trilogia iniciada com Goldenheart. Oportunidade única de testemunhar uma das mais importantes figuras da pop – seja ela de qual espectro for – da actualidade, num momento de euforia criativa imparável, naquele que será um dos momentos maiores da história da ZDB. Sem qualquer tipo de hipérbole. BS