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Concertos

Elysia Crampton ⟡ Polido

qua14.06.1722:00
Galeria Zé dos Bois


Elysia Crampton
Polido

Elysia Crampton

Embrenhada num limbo político-social, a obra de Crampton é titânica, complexa e ambígua. Dificilmente poderia ser concretizada numa outra época da história. A epopeia digital em que se tornou poeta sonora, lida com uma noção de caos, dominada por temáticas actuais como capitalismo selvagem ou tácticas de desinformação. É tomar pulso à realidade, não de um ponto de vista de provocação, mas sim de reacção e de transformação. O carácter libertário que exala da artista é um acto de resistência latente, espelhando, sem outra alternativa, uma realidade algo distópica, mas focada em alcançar um equilíbrio estrutural das coisas.

Nascida nos Estados Unidos, mas de raízes andinas, Elysia Paula Chuquimia Crampton é uma investigadora por natureza. Esmiuça alguma da memória sul-americana, relacionando-a com o colonialismo espanhol e os seus crimes, de onde o emerge último álbum ‘Demon City’. O que poderia ser, por si só, uma área de estudo específica, torna-se na verdade num ponto de partida – de geografia não definida. Se no panorama da electrónica nomes como Muslimgauze, Huerco S. ou Matmos já tinham dado importantes contributos em direcção a esse exercício de estudo e exposição histórica, a abrangência da autora – e o modo como interliga pontos às vezes até pouco comuns – situa-a num espaço insular. Entre 2012 e 2015 apresentou-se exclusivamente sob o alter-ego E+E, assumindo pouco depois o nome próprio e estabelecendo uma rede de colaborações intensas incluíndo Kelela, Total Freedom, Chino Amobi ou Lexxi. A ferocidade transgressora da sua expressão angariou-lhe uma atenção crescente por parte de festivais, galerias, clubs e toda uma geração desconfortável com o rumo destes tempos; no limite, cunhou um estilo que o apelidou como ‘severo’.

Mas o que torna afinal a sua arte tão vital? Dir-se-ia, desde logo, o seu risco natural, o nervo de desestabilizar para encontrar harmonia e justiça. De vingar uma historial demasiado longo de repressão e fundir esse discurso num corpo estético onde a electrónica também se assume como nómada, fluindo pela cumbia do Perú, pela techno de Berlim, pelo reggaetón do Panamá, até ao white noise de Nova Iorque; no meio do itinerário étnico-anarquista ressaltam breves flashes de samplagem de videojogos, filmes ou simples ‘found sounds’ numa colagem sonora alucinante e em constante fluxo. Os ganhos texturais de tais experimentações superam qualquer expectativa, seja num plano de pura estática e poesia improvisada ou de ritmos latinos ofuscados por programações maquinais. Crampton pega nas possibilidades de sonho e constrói uma imagética que atinge diversos registos: sci-fi, industrial, spoken word, psicadelismo ou mera performance (provavelmente a lista continuaria sem um fim aparente). De certo modo, estamos perante a criação de uma plataforma conceptual avessa à inércia e à indiferença, um trabalho em progresso, aberto e assente numa participação colectiva (em cada disco surge uma lista de convidados diferentes). ‘Sobrevivência é a chave’, segundo palavras da própria, em modo de resumo.

Numa temporada musical da ZDB que abrange ainda Moor Mother ou Klein, a inclusão de Crampton à agenda completa uma franja essencial no que de mais urgente e desafiante tem sido feito nos últimos tempos. Não será mais um concerto, senão uma instalação punk sem guitarras. NA

Polido

Mesmo que as suas movimentações geográficas não tenham uma influência directa em todo este percurso, não deixa de ser possível traçar um paralelo entre essa cartografia e o arco narrativo traçado por João Polido Gomes desde 2013. Após as vignettes evocativas da linhagem J Dilla/Madlib de “Side A”, a sua vivência portuense estreita-se com uma ligação à crew da Monster Jinx e “Plethora” a aprofundar a ideia do sampling para territórios mais abstractos e especulativos, de uma melancolia latente e enevoada, entre uma visão embaciada da Kompakt que interessou e a memória difusa do hip hop. Num contínuo de exploração em direcção à autonomia, e já em trânsito pela capital antes de rumar a Berlim, Polido recolhe a poeira dos dias para se acercar do funk de Theo Parish ou Moodyman e tangentes techno em câmara lenta num ruminanço mutante de batidas soterradas e texturas de field recordings como se escutou no auto editado “Find Meaning When You Lack Authonomy”.

Paralelamente tem vindo a construir uma colaboração sólida com MMNO, com aparições esporádicas em diversas salas e registo perene através da Fungo já este ano por via do paranóia urbana fixe de ‘Decadent Resistance’. Recolhendo esses vestígios geográficos, ideológicos e humanos de assimilação tácita, e já com residência em Berlim, Polido lamina todo esse percurso em algo ainda mais indefinível e singular, com um novo álbum já gravado a aguardar edição que corta com tudo aquilo que poderia existir de supérfluo na sua música e assume o silêncio, o tempo e a sugestão como valores primordiais, num trabalho de detalhada percussão e sons rarefeitos de valência absoluta, numa colagem de fascínio constante. BS

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