O Festival Rescaldo está de regresso a Lisboa, com mais de dois anos de música aventureira nacional para celebrar, em quatro salas da cidade, e mostrar que, apesar da paragem forçada, o tecido criativo mais desafiador do país se mantém vivo e pulsante.
Fiel à sua identidade, o Rescaldo programa, a par de nomes históricos que ano após ano continuam a deixar bem vincada a sua idiossincrasia e absoluta contemporaneidade, criadores de múltiplas novas gerações em pleno percurso de afirmação e maturidade, bem como valores emergentes dos mais diversos espectros sonoros cujas marcas se têm feito sentir ao longo dos últimos meses.
Os doze concertos em cartaz colocam em cena, para além da riqueza intergeracional, a diversidade de timbres, instrumentação e abordagens estilísticas em que a comunidade nacional é fértil; há espaço para a improvisação livre, para as eletrónicas modulares, para o jazz que resiste a deixar arrumar-se, para instrumentos tradicionais, para a imagem e o movimento em plano de igualdade com o som, para a formação clássica do rock. As propostas convidam à imersão tanto quanto à celebração; a intersecção, variação, ramificação e diálogo são necessidades incontornáveis. O Rescaldo é, como sempre foi, um espaço para outras formas de pensar e ouvir.
Festival Rescaldo
— Onda Xoque ⟡ MEDUSA Unit ⟡ Hetta ⟡ Rodrigo Amado & Tó Trips Dj set
Informamos que, desde 10 de Janeiro de 2022, o acesso aos concertos e terraço da ZDB depende da apresentação de certificado digital de vacinação, sendo obrigatório também teste negativo para quem não tenha dose de reforço de vacinação. Aceitam-se testes PCR (72h) e antigénios realizados em farmácia ou laboratório (48h), ou, em último caso, presencialmente.
Onda Xoque
Curiosidade extra quando propomos um concerto cujos protagonistas preferem o anonimato – será uma vantagem ou desvantagem dos programadores face ao público? -, mas também e sobretudo quando desse concerto podemos esperar um diálogo lúdico fascinante entre amigos, sentados em volta de sintetizadores modulares de fabrico artesanal, teias de fios e cabos espalhados como redes de pesca, combinações e percursos voltaicos decididos no momento. Tomando emprestadas as palavras do “nosso” João Castro: “eletrónica Escher”, ou um jogo de xadrez – ou de mais prosaicas damas – “sem vitória nem derrota”.
MEDUSA Unit
Álvaro Rosso: contrabaixo – André Hencleeday: piano – João Almeida: trompete – Ricardo Jacinto: violoncelo, composição – Nuno Morão: percussão
A Medusa Unit é um ensemble de formação variável que tem vindo, nos últimos anos, a dar corpo sonoro às composições do notável violoncelista Ricardo Jacinto, músico que tem vindo com assinalável mestria – e nos seus diversos projetos – a fundir as tantas vezes ténues fronteiras entre composição e expressão livre no momento, e entre acusticidade e amplificação.
Neste Rescaldo apresenta-se, pela primeira vez, nova composição, de título ‘Hino a Caríbdis’, na qual Jacinto se faz acompanhar do contrabaixo de Álvaro Rosso, do Piano de André Hencleeday, da trompete de João Almeida e da percussão de Nuno Morão; uma peça que se insere num continuum composicional que se faz valer das possibilidades híbridas dos instrumentos, numa dinâmica de simultâneo reconhecimento e afastamento tímbrico, que utiliza as suas propriedades-base em conjunção com engenhosas estratégias de micro-amplificação e de interferências de sinal. Um jogo entre fontes sonoras e espaço de escuta, uma música de múltiplas texturas que evoca escolas como o minimalismo ou o espectralismo, mas que se sente como corpo vivo e nunca petrificado.
Hetta
Alexandre Domingos: voz – João Portalegre: bateria – João Pires: guitarra – Simão Simões: baixo
De uma das margens afastadas da Margem Sul – falamos do Montijo – o quarteto Hetta traz a este Rescaldo a adoração do volume por vias da clássica formação rock: bateria, guitarra, baixo e voz. Mas é longe de clássica esta música, que remete para diferentes iterações do prefixo “pós” e resiste a definir-se numa corrente de fácil arrumação; o sentimento de abandono e entrega é notório, a violência contida da pausa e arranque perpétuos faz-se sentir como descarga que é, alternadamente, âncora e nuvem. Ou ainda, imagine-se um tempo e espaços alternativos em que o Montijo triangula com a Nova Iorque do princípio do milénio e Tóquio do seu final.
Rodrigo Amado & Tó Trips Dj set
Correndo o risco sempre presente da hipérbole, duvidamos que nos últimos anos alguém se tenha lembrado de um dj-set mais improvável e simultaneamente óbvio que este: improvável porque os universos musicais do saxofonista Rodrigo Amado e do guitarrista Tó Trips não parece tocar-se; óbvio, porque basta que olhemos para estes dois nomes na mesma linha para nos apercebermos de que tanta da música mais interessante feita no país nas últimas três décadas tem o cunho destes senhores – e isto tem que querer dizer qualquer coisa, que talvez venhamos a intuir durante esta noite.