Fechem os olhos. Ajustem o calendário da imaginação ou da projecção astral para 1974. Mantenham os olhos fechados. Enquanto deste lado do mundo se fazem revoluções disparando cravos na direcção de uma velha senhora moribunda e que não deixará saudades, do lado oposto, numa distante e misteriosa Tasmânia, um abalo surdo, íntimo e de facto invisível para o resto do planeta acontece quando a luz do estúdio se acende, indicando que se está a gravar e Howard Eynon extrai sentido da sua guitarra acústica e deixa que a poesia se liberte de uma garganta iluminada por um génio que ninguém conhece.
Isso foi há mais de 40 anos. Desse momento nasceu um solitário álbum, So What If I’m Standing in Apricot Jam, originalmente lançado na minúscula Basket Records e por isso mesmo condenado ao limbo de onde apenas coleccionadores de recursos consideráveis o poderiam resgatar de cada uma das raras vezes que aparecesse no ebay. Chegou a trocar de mãos por 1000 dólares, o que diz muito do seu estatuto de holy grail. Felizmente, para o resto dos comuns mortais, a britânica Earth Records reeditou o ano passado este pedaço de luz, um elo perdido entre a cena acid folk britânica da recta final dos anos 60 e o que o futuro fez com esse legado. Felizmente podemos agora fechar os olhos e viajar no tempo. Até o spotify ajuda…
Britânico de nascença, Howard Eynon foi no entanto educado numa remota quinta da Tasmânia onde pouco mais podia fazer do que fechar ele mesmo os olhos e deixar que a imaginação – ou o poder da projecção astral – o levasse para fora dali. Fotos da época mostram Howard Eynon como um jovem candidato a rebelde, com a moto a prometer fazer o que a projecção astral não permitia. Ainda adolescente mudou-se para Melbourne para estudar, fez teatro, viveu em Sidney e Brisbane, foi actor de televisão, conseguiu pequenos papeis no cinema – surge algures no incrível Mad Max, por exemplo – andou na estrada com Hunter S. Thompson antes da vida o ter levado para o recato e esquecimento de New South Wales onde só poderia aguardar que o tempo o descobrisse.
Podem agora abrir os olhos. O tempo é o presente e Howard Eynon está aqui mesmo, a olhar-nos nos olhos. Nos ouvidos temos as incríveis canções que a Tasmânia guardou durante mais de 40 anos. Canções feitas de guitarra e esparsos acompanhamentos de amigos – um violino aqui, uma económica percussão mais adiante – mas sobretudo de palavras carregadas de duplos sentidos, um subtexto queer, uma franqueza desarmante – no fantástico tema Hot B.J., e não precisam de puxar muito pela imaginação para perceber o que significam as iniciais, Howard canta sem qualquer tipo de contenção qualquer coisa como “se quiserem ser críticos e acharem que eu pareço o Donovan está tudo bem, não vou mudar”. O sunshine superman era de facto uma referência, como o madcap Syd Barrett, mas pela música de Howard Eynon passa uma original dimensão teatral que consegue insuflar vida nestas canções arcanas de mais de quatro décadas. Ironia, vida, humor e desarmante seriedade, liberdade, rebeldia, honesta paixão e desprendimento. Há de tudo nos labirintos erguidos entre as palavras e as melodias, entre a voz e as cordas. E há algo de muito estranho também: uma inexplicável actualidade, como se estas canções tivessem de facto sido projectadas para o futuro que é agora presente, da Tasmânia até ao Bairro Alto. Como se tivéssemos vivido todo este tempo à espera deste momento.
Quem sabe… Há coisas que não se explicam com a lógica, mas que se tornam óbvias com as canções certas. Senhoras e senhores: Howard Eynon! RMA