Contando com uma actividade franca e regular com registo pontual e perene através de 3 celebrados álbuns, este duo que une o septuagenário soprador Joe McPhee ao baterista Chris Corsano poderia parecer algo inusitado, dado o background distinto dos músicos, não fossem eles próprios figuras mestras de uma elasticidade inatacável, capaz de albergar inúmeras linguagens num discurso igualmente marcado e dialogante. Em ‘Under a Double Moon’, lançado em 2011, essas vozes distintas procuravam ainda um acerto simbiótico entre a espiritualidade e o lirismo feroz dos saxofones e trompete de McPhee e a expansividade da bateria de Corsano, mas deixava já claríssimas as intenções abençoadas que se viriam a revelar em toda a sua plenitude em ‘Scraps and Shadows’ e no último ‘Dream Defenders’.
Nascido na Florida, Joe McPhee aparece entre o caudal da primeira explosão free libertada por Coleman, Coltrane ou Ayler e a a sequência natural na cena loft de Nova Iorque dos 70’s numa espécie de elo perdido entre estes dois momentos. Fora desse contínuo, mas com todo um mesmo sentido, fogo e êxtase – com Ayler como espírito guia – na tradição da música negra mais libertária, McPhee tem desde logo na Europa um refúgio seguro que acolhe esse seu sopro com reverência, em particular através da suiça HatHut, fundada em meados dos anos 70 com o intuito editar os seus trabalhos. Ligação essa que ainda hoje se mantém – através de grandes como Peter Brötzmann, mas também em combos como o Survival Unit III – apesar da relação íntima com o legado e a realidade do jazz americano que é lhe é transversal. Nesse contexto, e numa rede de colaborações insondável e em constante crescimento, tem tido em formações como os Trio X ou nomes como Ken Vandermark, cúmplices certeiros.
Chris Corsano acaba por ser uma possível encarnação fidedigna dos próprios princípios orientadores da ZDB. Encontrando meio mundo de gente essencial para colaborar, numa infindável lista de ilustres que passa pela Björk, Thurston Moore, Jim O’Rourke, Michael Flower ou Paul Flaherty. Foi aliás, no contexto do seu duo com este último que as inclinações far out rock começaram a acercar-se de modo mais expressivo do jazz libertário, que o levaria posteriormente a encarreirar numa via de contínuo interesse e descoberta com registos nos Malus (com Hugo Antunes e Nate Wooley), no trio com Evan Parker e John Edwards ou abordando o motivo para todo este texto, o quarteto com Rodrigo Amado, Kent Kessler e o próprio Joe McPhee. BS