A História escreve-se de feitos e de heróis, de conquistas e de derrotas. Mas também se reescreve e resgata parcelas outrora esquecidas ou relegadas para segundo plano. Na história mais recente da cena musical de Chicago constam presenças que entretanto saltaram para o restante país, continente e planeta. Foi na senda dos 90s que daí surgiram algumas das movimentações sonoras mais cativantes da época – e enquanto boa parte se concentrava noutros pontos geográficos como Seattle ou Los Angeles. Dessa vanguarda de onde emergiram Jim O’Rourke, John McEntire ou David Grubbs, a mestiçagem de géneros fecundou maravilhosas encarnações plenamente desafiadoras a quaisquer definições. Muitas delas ainda hoje sobrevivem e mantendo uma linguagem que embora se reconheçam ecos, os seus resultados continuam a existir sem paralelo. Num circuito devido, estes foram heróis claros e hoje, não menos que figuras irrepreensíveis. Obviamente muitos outros criadores andariam a gravitar nesse espaço, a maioria em participações menores ou projectos um pouco mais obscuros. Joshua Abrams é um desses exoplanetas, sempre presente e influente, mas aparentemente distante das atenções. E apresenta um currículo que atesta qualquer prova de competência: integrou nos Joan Of Arc, formou os Town and Country e tocou com Bonnie ‘Prince’ Billy, The Roots ou Matana Roberts. A variedade da natureza colaborativa revela a sua pré-disposição para o risco e para a descoberta. A discografia em nome próprio ainda se encontra a escrever um capítulo que só ele saberá – e que convém acompanhar.
As atenções redobraram-se quando o ano passado vingou fortemente nas colunas de destaque de publicações como a New York Times, Wire ou Pitchfork. O motivo foi Magnetoception, uma espécie de epopeia composta por Abrams e circunscrito a apenas uma criteriosa selecção de convidados de topo em união rumo a esse terreno de ninguém a que o contrabaixista norte-americano tanto gosta de se dedicar. Levou consigo para estúdio as guitarras dos veteranos Jeff Parker (Tortoise) e Emmett Kelly assim como as várias percussões de Hamid Drake. Este terá sido o núcleo duro do projecto que, a seu tempo, alargou o círculo aos preciosos acréscimos de outros músicos. À parte do seu instrumento de formação, Joshua Abrams abre fendas na tradição da música ocidental através da introdução de uma improvável e milagrosa palete de meios. O guimbri, originário de Marrocos, é o elemento que guia esta real travessia geográfica, cultural e histórica. Magnetoception prima por anular épocas ou contextos; passado e futuro alinham-se num curioso trabalho de reinterpretação e imaginação tanto pessoal quanto colectivo. Para além do jazz, do rock ou da música ambiental. Muito além.
Do minimalismo predominante das composições, apercebemo-nos da importância vital em respeitar a ‘ordem das coisas’. Para de seguida os músicos se entregarem ao momento e aos seus naturais desvios, efeitos e atmosferas. Ao longo de mais de uma hora, o transe impõem-se. Cada instrumento deixa soar sem imposição a nota que solta para depois ser amparada por uma vigorosa rede rítmica em modo de marcha cerimoniosa. Existe aliás esse lado quase ritualista na música de Abrams. A mestria na combinação e gestão de pormenores trazem-nos à memória os melhores: Don Cherry, Master Musicians Of Jajouka, The Necks ou Sandy Bull. Ou seja, a força telúrica no seu esplendor. Se é verdade que são bastantes os exploradores talentosos a operar nas paisagens circulares extra-terrestres, também há-que acrescentar que não serão assim tantos a esgravatar a terra e a beber a água da chuva antes de olharem para as estrelas que os cobrem lá de cima. E essa é uma característica que acaba por distinguir, cada vez mais, a obra continuada de Abrams. Aguça-nos os sentidos, desperta-nos o subconsciente e rebenta, lentamente e sem estrondo, aquela bolha da realidade de betão, semáforos e ponteiros de hora. Suspende tudo isso, como se de um Mundo Novo se tratasse.
Esta contramaré simbolizada por Magnetoception chega a Lisboa pela primeira vez e ainda a recolher méritos por onde passa. À pessoal central de Joshua Abrams, junte-se o seu grupo Natural Information Society. Por lá vamos escutar o gongo e harmonium de Lisa Alvarado, a autoharp de Ben Boye e ainda a bateria Mikel Avery. Parece, e é, uma convocatória de forças pouco ortodoxas cujo caminho é a da transcendência. Neste serão espera-se que nos façam entender que essa experiência é mesmo possível numa pequena sala bem no coração do Bairro Alto. NA