Ouvir Kim Gordon ao lado de Ikue Mori significa que o mistério e o assombro dos Sonic Youth não foi alucinação ou mentira. O encantamento impassível dos seus sons (e vozes) não se apagou. Apenas se fragmentou em aventuras e experiências individuais que um dia alguém irá, com certeza, mapear e historiar. Entretanto, não nos resta outra coisa senão seguir os rastos que a banda nova-iorquina vai deixando. Sim, porque para todos os efeitos, ela ainda não morreu. Os membros dos Sonic Youth foram sempre individualidades no sentido mais profundo da palavra: não se subsumiam a um grupo e os gostos comuns não se sobrepunham aos afectos e projectos individuais. Basta olhar para as biografias. Ranaldo tinha uma inclinação pelos anos 1960, Thurston pelo punk nova-iorquino, o pós-punk e o hardcore, Gordon pela música e a arte da Califórnia. E todos com excepção de Shelley, tinham um passado recente nas vanguardas musicais de Nova Iorque. A vontade de fazer música para além do contrato das grandes editoras foi sempre mais forte. E a colaboração de mais uma década entre Gordon e Mori atesta isso mesmo, num disco admirável (“SYR5”, de 2000, que conta com a colaboração de DJ Olive) e em diversas actuações ao vivo. A voz e a guitarra da baixista dos Sonic Youth parecem destacar-se – como todas as coisas reconhecíveis – mas são as vibrações, os gritos e as batidas que a antiga percussionista dos DNA arranca do laptop, que devolvem a Kim Gordon uma (hoje) rara liberdade para improvisar e fantasiar. A partir daí, tudo é possível com a evocação de um mundo de ecos e fantasmas. A No Wave, os Suicide, o free-jazz, o noise e até trepidação sónica do hip-hop sobre o asfalto. Uma Nova Iorque fora de tempo. Neste tempo. JM
Kim Gordon & Ikue Mori ⟡ Margarida Garcia
Kim Gordon & Ikue Mori
Margarida Garcia
Estreia a solo na ZDB da improvisadora Margarida Garcia, na sequência da edição recente de “The Leaden Echo” (pela Headlights, de Manuel Mota), as primeiras gravações a solo que dá a conhecer em quase uma década (em 2003 pôs cá fora “So I put my coat on and walked downstreet”, um ano depois de ter sido galardoada com a Bolsa de Arte Multimédia Ernesto de Sousa pela Fundação Calouste Gulbenkian). Entre um e outro lançamento a contrabaixista lisboeta construiu um dos mais relevantes corpos de trabalho da improvisação contemporânea portuguesa, sublinhando com uma sensibilidade meticulosa o precipício luminoso entre a gravidade do instrumento e a fragilidade da abordagem. Entre os seus colaboradores mais recentes contam-se músicos insuspeitos como Loren Connors, Manuel Mota, Chris Corsano, Laurie Anderson, David Maranha, Helena Espvall, Charalambides, Matt Valentine, Marcia Bassett, Mattin ou Barry Weisblat, entre muitos outros. Sozinha, Margarida vira o seu contrabaixo para dentro. A música, assombrada, monolítica, define-se pela exclusão e arranca ao fundo do escuro sons e ausência de sons que vêm de longe – do inominável. A sensação é não tanto de se estar a ouvir mas de se estar à escuta, furtivamente. Um pouco como quando se olha para Margarida em palco, agarrada ao contrabaixo, e nem sempre se percebe quem é que está a segurar quem. MP