“Lançaram-se ao assalto do céu” é uma expressão que Marx usou num texto dedicado à Comuna de Paris, referindo o glorioso gesto do proletariado francês. Retomo aqui a expressão, inspirada também pelo título de um dos filmes deste programa, para introduzir uma incursão na dimensão mais criativa e agitadora das lutas políticas extremistas da Itália da década de 1970, as que perseguiam, entre o idealismo, o sonho e a desconstrução da linguagem, a ideia da revolução.
A exposição de Pablo Echaurren, a sua colaboração com Lotta Continua e, sobretudo, a ironia e a criatividade dos Indiani Metropolitani, com a hibridação de códigos, a deriva situacionista e a crítica da mercantilização da arte, proporcionam uma feliz oportunidade para intentar uma incursão nesses anos através do cinema underground e dos arquivos fílmicos que os documentaram.
Na década de 70, o movimento político de contestação foi fortemente actuante, aliava os jovens, os estudantes, os operários e os indesejáveis, numa luta apertada contra o poder do capital e dos sistemas coercitivos que encarceravam a vida, o trabalho, a linguagem, a expressão, a imaginação e também o futuro. O movimento, interclassista e destemido, irrompeu nas praças e nas ruas, nas fábricas, nas universidades e nas escolas, na família, nos media, na arte e na vida, com o vigor das ideias e da política, mas também do desejo e do sonho.
Estava em campo a alienação da fábrica, a migração operária para o norte do país, a “questão feminina”, a saúde mental e as instituições psiquiátricas, a habitação, as prisões, o antimilitarismo e a “objecção de consciência”, a história, a política, a família, a educação, a desconstrução da linguagem e a contracultura, o corpo e a sua expressão, o teatro e o cinema, as periferias, a cultura rural, a antropologia no terreno, a terceira página dos jornais e o panfleto, os livros e os diários, a arte e a poesia, a fantasia e o sexo, o céu… O assalto irrompia na sociedade inteira e atacava interseccionalmente os seus males e vícios. O sequestro e o assassinato de Aldo Moro, em 1978, assinalará o aperto da estratégia da tensão, das leis especiais e da violência policial, o princípio do fim de um movimento de militantes e sonhadores que, confrontando-se também com conflitos e contradições enormes, foi entre os mais actuantes do século XX italiano. A época ficará marcada pelos seus gestos, certo cinema permite-nos revisitá-los.
Não será o presente a esclarecer o passado ou o passado a esclarecer o presente, mas é a dialéctica entre o presente e o passado que nos permite olhar para o futuro. Dedicado prioritariamente a filmes da década de 70, ou à revisitação dos arquivos desses anos, o programa confia ao cinema a hipótese de abrir e reinterrogar a história.
Fulcral nesta perspectiva é uma figura incontornável do cinema underground italiano, Alberto Grifi, cineasta visionário, experimentador artesão, filho de um cameramen que o habituou a brincar com lentes, objectivas e rolos de película, filmmaker que soube, com ousadia e como poucos outros, transportar em si e transpor no seu cinema os anos 60 e 70, mantendo o seu enfoque na pesquisa artística e cinematográfica. Cinema experimental e directo, questionava a própria integridade dos seus gestos, provocando escândalo e culto. “Conduzidos pelo fluxo da película, administramos os gestos da realidade, reificando-a e mercantilizando-a”. No breve depoimento, Alberto Grifi introduce Anna, o cineasta partilha reflexões sobre a radical experiência da realização do filme Anna, primeiro filme italiano gravado em vídeo em 1972, 11 horas de videotapes transcritos para uma edição em película de 225min, em 1975, com um vidigrafo fabricado experimentalmente em casa. Não há cinema que consiga contar melhor o espírito e os gestos desses anos, actuando no interior do próprio movimento, desconstruindo também os códigos e o sistema da produção cinematográfica. De Grifi vamos poder ver também as célebres imagens filmadas no Festival del proletariato giovanile al Parco Lambro (1976), a histórica, festiva e conturbada última edição do Festival da Juventude Proletária organizado pela revista Re Nudo, juntando Lotta Continua e as diversas correntes extremistas do movimento. O festival, que contou com a presença de mais de quatrocentas mil pessoas, foram quatro dias de magnífica loucura, música livre e festa, concertos e assembleias, marcados também por problemas de ordem pública, com confrontos no seio do movimento.
No Focus dedicado a Grifi vamos ver outra curta-metragem por ele realizada nessa década, a ficção científica política Dinni e la Normalina, ovvero la videopolizia psichiatrica contro i sedicenti nuclei di follìa militante (1978), e o outro filme que foi encomendado e censurado pela RAI (televisão pública italiana), Michele alla ricerca della felicità (1978), narração crua, duramente essencial, da condição e da violência nas prisões. E, ainda, testemunhando as cumplicidades que Grifi foi estabelecendo no meio artístico, Verifica Incerta, um filme realizado em 1964 com o artista que foi mentor de Pablo Echaurran, Gianfranco Baruchello e um ready made de Grifi, um filme encontrado nas bancas de uma pequena feira em Senigallia, Il preteso corpo (1977), documentário hospitalar sobre a experimentação em doentes psiquiátricos.
Na primeira sessão do programa, Assalto al cielo (2016), de Francesco Munzi. É um realizador de outra geração, que viveu a década de 70 em criança, a dedicar-se hoje a uma tenaz pesquisa nos arquivos, orientado pelo desejo que as imagens e os seus protagonistas possam voltar a abrir uma janela sobre essa estação. O filme, inteiramente construído com imagens de arquivo, é fruto de uma longa investigação nos principais arquivos audiovisuais italianos, percorridos à procura dos materiais menos manipulados pelos comentários, preferivelmente filmados pelos mesmos cineastas que participavam no movimento. Devolve, inevitavelmente, um olhar pessoal, gerando também reacções controversas.
Encerrando, o primeiro incontornável filme de Nanni Moretti, Io sono un autarchico (1976), a primeira longa metragem narrativa em Super 8 da história do cinema italiano, découverte fracassante segundo a crítica francesa, desafio ao espectáculo do cinema lançado por um autor que fazia tudo sozinho. Michele Apicella, personagem fetiche de Nanni Moretti, cansado pelas relações, pelos rituais de comunicação que lhe esvaziam o sentido, em plena crise sentimental, é envolvido por um amigo num projecto teatral. “A sociedade assim como é, não propõe nada. Não há valores nem modelos de vida ainda credíveis. Eu decidi portanto criticar os que procuram. Dos outros, nem vale a pena ocuparmo-nos.” Moretti escolhia falar da esquerda com ironia, surpreendendo-nos com a sua paródia da militância, um amargo presságio do individualismo que se seguirá.