A região africana colada ao deserto do Saara emprestou inspiração a um dos projectos editoriais mais celebrados dos últimos anos. A Sahel Sounds nasceu da cabeça e do coração de Christopher Kirkley, arquivista nato e melómano absoluto. O que começou por ser um processo de recolha da tradição oral e musical dessa zona depressa se tornou em algo maior. Quase naturalmente, também a arte plástica e o cinema começaram por surgir nesta aventura, ampliando o seu arquivo em vários formatos. Mdou Moctar, Mamman Sani ou a L’ Orchestre National de Mauritanie foram alguns dos segredos trazidos por Kirkley para o mundo ocidental. Todos homens, pelo menos até agora.
Numa incursão etnográfica pela cultura Tuareg, as Les Filles de Illighadad são um exemplo insular de intérpretes femininas na sua sociedade ainda fortemente estratificada e cuja predominância masculina é real. Fatou Seidi Ghali e Alamnou Akrouni são as duas fundadoras, entre guitarra e vozes a que logo se juntou a dançarina Mariama Salah Assouan e o guitarrista e primo de Fatou, Ahmoudou Madassane. Se no passado nomes como Tinariwen ou Bombino se revelaram como referências maiores, as Illighadad aportam uma abordagem e linguagem necessariamente diferentes. Em 2016, no festival Le Guess Who?, em Utrech, provaram dominar o sagrado e o celebratório com igual destreza, ficando na memória de muitos como uma das actuações mais fascinantes do evento.
“Eghass Malan” é um baú intemporal de cânticos e gritos, percussão xamânica e guitarras caleidoscópicas. Um daqueles discos que já por si acarreta uma deslocação geográfica mental; algo que por sua vez se traduz numa experiência próxima da sinestésica – obviamente não existem estímulos reais de olfacto ou tacto, mas eles estão afinal presentes em cada minuto, nem que pela poderosa força da sugestão. Sublinhe-se a beleza melódica destas composições desérticas, mas igualmente a familiaridade destas composições, tão diferentes e no entanto, tão reconhecíveis. É música rural na sua índole, sem exigências de maior, senão tempo para contemplação.
Há menos de um ano estiveram por cá no Festival Islâmico de Mértola – e em mais algumas datas pontuais – trazendo uma herança e verdade raras nos dias de hoje. Nesta noite, haverá mais para ver e ouvir desta oferenda dos deuses. NA