Seria um mito, não fosse a sua vivência tão impregnada no real. Artista completo que passou anos e anos de ofício em relativa obscuridade para se estrear em lides editoriais já com 62 anos através da Dust-to-Digital com o luminoso ‘Just Before Music’. História incrível plena de vida e riqueza humana. Nascido no Alabama nos anos 50 em plena era Jim Crowe, sofreu na pele a condição de negro no Sul, à deriva por entre casas de acolhimento, pobreza e trabalho árduo – de cozinheiro a coveiro – a embater continuamente na dureza da realidade, até um despertar divino para a arte em 79 o levar a uma visão pessoalíssima, primeiro na escultura, enquanto reflexo íntimo desse mundo. Detritos e objectos que carregam peso e memórias para uma nova narrativa plena de simbolismo e verdade.
Expandindo o seu campo de acção por entre a escultura, pintura, desenho, escrita ou performance, com trabalho justamente reverenciado ao ponto de chegar à Casa Branca, consta que terá descoberto a sua voz e expressão musical em meados da década de 90, aparecendo muito secreta e esporadicamente ao vivo em contextos bem íntimos, como aquele em 2010 o revelou a Lance Ledbeatter da Dust-to-Digital. Lançado dois anos depois, ‘Just Before Music’ apanhou toda a gente desprevenida – não daria para estar, na verdade – e ainda hoje é assombro sem paralelo, música como reza, num processo catártico e libertário que assumia uma forma planante que seria continuada no ano seguinte com ‘Keeping a Record of It’ e convidados como Bradford Cox dos Deerhunter.
Canções simples de traquejo puro, nascidas da improvisação, que gravitam num plano aparentemente intangível mas de ressonância absoluta: a voz e os teclados sonhadores de Holley em hinos de devoção, clamor e revolta, num fluxo de consciência hipnótico que palpita com uma urgência e vitalidade únicas. Verdadeiramente livre, apenas comparável numa esfera simbólica onde podemos encontrar os espíritos de Arthur Rusell, Nina Simone ou Laraaji, onde a sobrevivência se projecta no cosmos, numa poeira de partículas dos blues, do jazz, da soul, do minimalismo, sem nome. Expressão pública como algo absolutamente necessário, confessional, a ter continuação no final do ano passado de forma discreta mas igualmente pujante e (sempre) pertinente com ‘MITH’ pela Jagjaguwar – “I’m a suspect in America” são as primeiras palavras que se ouvem e de uma sinceridade devastadora e devastada, mas ainda assim esperançosa. Nem que seja porque não existe outra forma. BS