A partir de 2006, para escapar ao tédio lisboeta, desafiei o João e o Pedro, com quem já tinha trabalhado na ZDB, para excursões artísticas noutros lados do mundo. Era do estilo, dinheiro no bolso que angariávamos a rapar concursos públicos e que cambiávamos em dólares, equipamento no porão do avião e, durante cinco anos, procurámos os lugares mais inusitados para a criação artística… Angola, Brasil, Argentina, Marrocos, Chile…
Em Atacama, sempre que entrávamos num edifício público havia uma cova reconstruída com uma múmia na posição fetal, uns vasos de cerâmica, uns panos, e nós parvos, horas a olhar para aquilo. Depois à noite no deserto ficávamos especados a ver as montanhas contra o céu estrelado. As luzes noturnas cintilantes furavam os olhos. Era como se não houvesse no mundo um lugar onde as estrelas estivessem tão próximas, como se o céu pudesse cair sobre as nossas cabeças. Imaginávamos a noite ancestral com vinho tinto, a noite primeva das Américas quando ainda se enterravam os mortos nas montanhas, as múmias que o burocrata moderno expõe nos museus para os turistas contemporâneos. Ver mesmo de perto a proximidade de um infinitamente longe. E na vitrine… a múmia exumada com a cabeça em forma de melão alongada na direcção das estrelas; o cadáver no buraco, vasos e panos, um vidro por cima e uns diagramas didácticos onde se explicava como os ameríndios procediam para lentamente alterarem a forma encefálica. O João e o Pedro gostavam daquilo e diziam palavras “bonitas”: macrocefalia, eflúvio magnético, abissologia e fantasma, eu acreditava que eles viam merdas nas coisas que eu não via, mas sempre desconfiado das palavras, achava que a cópula celeste nos Andes devia ser boa como o milho.
Quando fui com o Alexandre para a Lagoa das Sete Cidades, imaginei que podia trabalhar com ele da mesma maneira, mas a sua resistência a viajar e a sujar as botas entalou-nos numa cabana de madeira húmida no centro da cratera açoriana.
Lá fora, no frio, uma nuvem selava o vulcão enquanto em desespero afiávamos uma criptoméria contra a lareira. A paisagem que nos vendiam como impoluta era agora um lago no Quénia, uma lixeira química de fertilizantes; e a escarpa verde que descia até a lagoa azul, uma encosta japonesa de um latifundiário agro-pecuário. Tudo ecoava outras paragens.
À meia noite, aproveitando a coragem de um charro, fugimos por um túnel que perfurava a parede do cratera em direcção ao mar. Percorremos mudos os infindáveis 1200 metros de teias de aranha. Qualquer estímulo era exageradamente interpretado. No silêncio invadiram-nos luzes entópticas cortadas por um ladrar satânico de um cão de fila, barulhos estridentes que descobrimos mais tarde virem da folga de uma válvula de esgoto nos tubos que percorriam a gruta Homo faber. A meio caminho a parca luz de um Nokia da idade da pedra revelou-nos dois cubos isométricos e uma vulva geométrica cozidos no morno da rocha.
Foi no negro da rocha basáltica, que a primeira ideia surgiu ao Alexandre, a Viagem ao Meio, um trabalho estrutural que cruza o filme como matéria e a imagem vídeo como representação…Voltámos então à gruta com um rolo de 600 metros de película debaixo do braço, e do centro, desenrolamos a fita virgem no chão no meio da lama, até à boca do túnel, como testemunho da progressiva entrada de luz natural numa câmara escura, no negro do centro do vulcão. Depois o Estrela filmou o corredor com uma câmara digital, avançando pé ante pé até à saída que dava ao mar, pelo caminho dentro focando o ponto de luz oscilante na outra extremidade. Mais tarde na Zdb recriámos a experiência e projectaram-se as duas imagens em simultâneo, sobrepostas, num cinema longitudinal, uma bancada alta de dois degraus, e uma viagem feita a dois, aos dois meios, o digital e o analógico, do princípio ao fim um luzeiro.
Mas não ficámos por aqui. Depois da nossa experiência na Atlântida, e já com o artista animado, convenci-o a viajar pelo mundo fora, chegámos a Timor timor, a leste do leste como lhe chamam os locais, e convidados por aristocratas em fato de treino, testemunhámos a exumação do guardador da montanha seis meses depois do seu enterro católico. No Mundo Perdido, participámos incrédulos em novos rituais funerários… foi porreiro, havia Sumol de laranja e comemos búfalo com batata frita.
De volta a Lisboa, o João e o Pedro mostraram-me um filme invulgar quase documental que fizeram em São Tomé a que chamaram Papagaio, perguntei-lhes porquê? e eles vieram- me de novo com aquelas palavras esquisitas, ventriloquismo. Era um ritual de transe em que o espírito dos mortos entrava nos corpos “sobrenaturalizados”, a banda tocava música, invocavam uns santos africanos e almas penadas desciam involuntariamente a quem se desse a essa força hipnótica. Os artistas filmavam, depois passavam a câmara aos monstros e o filme era um, e outro, ao mesmo tempo um filme realizado por eles e um filme de zombies, como num teatro de mortos- vivos, uma luz ao fundo do túnel a meio de qualquer coisa.
Natxo Checa, Julho de 2016