Dadas as circunstâncias reais e mentais em torno da pessoa e da sua obra, torna-se meio inevitável e recorrente fazer uma ponte imaginária entre a cartografia musical de Lucrecia Dalt e o seu passado enquanto engenheira geotécnica, mesmo que a verdade acabe por ser bem mais metafórica do que resultado de uma influência directa. Como se o traçado das ambições surrealistas da indie-pop lânguida de ‘Congost’ até à insularidade de ‘Anticlines’ fosse marcado por um chamamento telúrico enquanto descoberta pessoal. Mapas mentais projectados nos confins mais solitários da realidade. Um processo de laminação das primeiras explorações em torno da canção alucinatória na sua terra natal – Colômbia – até ao espectro harmónico nascido daquilo que é verdadeiramente essencial que tem vindo a depurar em solo europeu – primeiro em Espanha e agora Berlim.
Com o fantasma de Laurie Anderson a pairar desde o início como via mais ou menos gratuita e inescapável a comparações agigantadas num contínuo histórico de descontrutivismo em torno das convenções da pop, Dalt tem vindo a abraçar uma mesma intransigência e exploração brava e contínua, que mais do que relembrar a música da criadora de ‘Big Science’ espelha um mesmo comprimento de onda assente numa total liberdade criativa e humanidade. Acto contínuo com todo um campo espectral onde grandes como Meredith Monk, Cosey Fanni Tutti ou Ruth White são hoje “ecoadas” por Holly Herndon, Julia Holter ou Laurel Halo.
Dessas primeiras questões em torno da canção ainda assentes numa instrumentação mais orgânica com a guitarra a ditar coordenadas para a harmonia de uma voz bem singular e arranjos sinuosos – Congost – ficou a visão de um futuro que teve primeiro abalo com a pulsação electrónica envolta em mistério de ‘Commotus’. Portal para os desígnios cada vez mais insondáveis e fascinantes que se materializam na depuração sónica e lírica de ‘Syzygy’ e ‘Ou’ – discos conceptuais influenciados pelo novo cinema alemão e por campos magnéticos, respectivamente, e onde as canções se sustém numa aura especulativa, que mais do que respostas vive das suas questões.
Reflexo dessa mesma descoberta contínua em torno dos universos interiores e exteriores, a música rafracta-se num campo harmónico de sons electrónicos rarefeitos que por associação livre se ligam ao trabalho sempre influente da BBC Radiophonic Workshop e ao pioneirismo de Delia Derbyshire e principalmente Daphne Oram – e desenvolvendo a ideia num binómio voz + electrónica tem antecedente místico em ‘Flowers of Evil’ da já citada Ruth White. ‘Anticlines’, recentemente lançado pela atenta Rvng Intl. é o momento mais precioso de todo este processo. Sempre intrigante. A calcorrear os recantos mais inóspitos desta e de outras existências. BS