O rock foi sempre terreno fértil de gente culta, pelo menos desde os tempos dos Velvet Underground: rockers imersos em ciência, poesia, filosofia, cinema ou literatura dão personagens fascinantes, porque a ideia de condensar esses infinitos universos que cabem dentro de um romance ou de um filme ou mesmo dentro de um qualquer inacessível campo da ciência numa canção de três minutos parece uma tarefa impossível. E o rock sempre se deu bem com impossíveis.
Tome-se o caso de Elias Bender Rønnenfelt, vocalista dos Iceage desde 2008, frontman de Marching Church desde 2010: este punk dinamarquês aproveita a estrada para coleccionar livros, desde tratados filosóficos a biografias, como a de Billie Holiday que apanhou em segunda mão algures numa thrift store da América profunda. A cabeça cheia de palavras e conceitos e ideias e histórias e mais ideias alimenta-lhe a verve em Marching Church que editou este ano pela Sacred Bones o visceral ‘The World Is Not Enough’. Mas não visceral no sentido eléctrico-dois-acordes-cuspo-e-suor do termo. Visceral porque parece vir das entranhas, do âmago. E repare-se que se evita aqui a palavra “alma”: Elias prefere as sinapses a essa coisa indizível e mais espiritual que alimenta religiões. Elias prefere a filosofia.
‘King of Song’, tema de ponta (e mola) de ‘The World is Not Enough’, soa algures entre Nick Cave e Leonard Cohen e a soul de Otis Redding, com uma boa dose de drone a suportar todo o caos que se desenvolve à superficie da canção. O projecto Marching Church surgiu em modo solitário, com um microfone, uma guitarra e umas quantas máquinas de produzir ruído, mas evoluiu para uma banda: Kristian Emdal, Anton Rothstein (dos Lower), Cæcilie Trier (Choir of Young Believers), e Bo H. Hansen (Hand of Dust, Sexdrome) e Frederikke Hoffmeier (Puce Mary) são cúmplices nesta viagem sem mapa, de olhos semi-cerrados, como se Elias, após ler sobre psicologia, estivesse a tentar ligar-se a remotas regiões do seu próprio ego só para ver o que dali pode sair.
Ao vivo a experiência é amplificada pelo agora, pelo carácter imprevisível do próprio tempo, como se cada concerto fosse uma experiência laboratorial em que se alteram as proporções da fórmula para testar os resultados. Mas há uma verdade indesmentível na voz de Elias Bender Rønnenfelt, a verdade de quem vê mais longe, de quem sabe algo que os outros ainda não lograram descobrir. Porque é que o mundo não chega, afinal de contas? “Usei esse título para este álbum porque carimba perfeitamente o sentimento de insuficiência que só se obtém de facto quando se vai a meio de um salto no ar. Quando se aterra é típico ficar-se impaciente enquanto se busca a próxima cena. Começa-se a ter a ideia de que nada será alguma vez suficientemente bom. Não estou a tentar ser pessimista, só é preciso concluir rapidamente que a transformação constante é de alguma forma necessária”. Ficam avisados. RMA