E a música de guitarras continua a fazer -se (muito) com a voz das cordas. Foi um percurso longo, cheio de desvios e derivas. Mas podemos assinalar alguns momentos, coincidências. Entre 1993 e 1995, os Earth editaram dois discos onde as canções eram recipientes de modulações e atmosferas (‘Earth 2: Special Low-Frequency Version’ e ‘Phase 3: Thrones and Dominions’): rock que de tão “pesado” se tornava horizontal. E em 1997, Neil Young calava-se para deixar os acordes acompanharem a viagem de William Blake (Johnny Depp). Durante este período, os Nirvana já haviam terminado e a música electrónica tomava de assalto a história como o único género esteticamente progressivo. À guitarra, eléctrica ou acústica, restava uma autorreflexão e um regresso ao passado com dois intuitivos: explorar outras potências (o drone) e rever cânones e histórias (como a da Escola de Takoma, do free-jazz, do improv, do noise ou de gentes esquecida: Harry Pussy ou US Maple). O resultado foi a descoberta de um universo que continua a expandir-se. Filipe Felizardo pertence a esse universo, ainda que a sua música não obedeça a programas ou referências. Traçou o seu próprio lugar e a partir dele compõe espaços e silêncios. Há momentos em que a guitarra sugere melodias ou acordes reconhecíveis, mas logo se sustém, antes de largar vibrações, ecos. Num momento, ameaça “cantar”, noutro abraça a efemeridade do som. Nunca se impõe. A conversa que estabelece com o instrumento abre-se aos outros, com inflexões suaves, pontuações seguras. É melancólica, tímida, fugidia, imprevisível. De alguma forma, na música de Filipe Felizardo – e o novo disco, “Guitar Soil For The Moa And The Frog”, com selo da Shhpuma é disso exemplar – ouvem-se duas vozes. A da reverberação, que é a do aço (da guitarra) e a do fazer solitário, artesanal e reflexivo do performer. É essa relação intimista, irredutível, ricamente austera que as canções revelam. Uma relação hoje tão desprezada, com o som e com acto de ouvir: música de guitarras. JM