Parte do encanto de nos apaixonarmos por músicos como Myriam Gendron (Otava, 1988), passa por perceber que são pessoas como nós. Só que, enfim, brilhantes. Poderia ter ficado só com um disco no currículo, o magnífico “Not So Deep As A Well” de 2014, onde transformou os poemas de Dorothy Parker em interpretações inesquecíveis. E ficava bem. Durante algum tempo, era um pensamento que passava frequentemente pela cabeça de quem conhecia Gendron, talvez tivesse desaparecido. Talvez não tivesse mais. Talvez fosse só isso. Mas quando, no ano passado, houve notícias de um novo álbum, “Ma délire – Songs Of Love, Lost & Found”, ficou claro que afinal só tinha uma vida, como todos nós. Tinha de pagar contas. Teve filhos. E o quanto o quotidiano limita para se poder criar, ter tempo para isso.
Só que ao segundo álbum não fez aquilo que as pessoas como nós fazem: atirou-se a um projecto mais ambicioso. O resultado? Quinze canções, 75 minutos em volta de uma reimaginação de música tradicional francesa, canadiana e norte-americana. E, mais uma vez, a questão não é tanto o que aprendemos com o que Gendron canta, mas aquilo que sentimos. Apesar do seu trabalho de pesquisa ser fenomenal, o que salta à vista – mais do que a sua brilhante fluência do cantar em duas línguas, inglês e francês – é a capacidade de interpretar, recriar e reinventar estas canções com propriedade.
O talento de intérprete é-lhe natural, consegue dar uma luz especial aos temas em que pega e juntá-los com a coesão necessária de um álbum. Em “Ma délire – Songs Of Love, Lost & Found” trabalha algumas canções com Chris Corsano e Bill Nace e usa o talento de ambos para dar um oxigénio único a estas músicas: como se assumisse que qualquer coisa extra à voz e guitarra fizesse a música levitar. E faz, são temas – “C’est dans les vieux pays” e “La jeune fille en pleurs” – que se distanciam dos outros, pela forma como conquistam um espaço maior e parecem afinar a percepção de que ainda há muito para conhecer de Myriam Gendron. Este concerto na ZDB é uma oportunidade rara para estar na mesma sala com uma das grandes intérpretes contemporâneas. Ela não dá muitos concertos e é possível que a vida se volte a intrometer na carreira musical. Não se sabe. Faz parte deste encanto. Da verdade. AS