Não existe melómano neste mundo que negue a felicidade de se surpreender perante um disco capaz de mexer bem fundo com as suas expectativas, memórias e uma parte de si eventualmente esquecida. É um encontro raro e imenso ilustrado por ‘Sundowning’, obra punk suprema do ano transacto que colocou os Nu Sensae num campeonato mais amplo. Uma entrega pessoal que terá sido tão imediata quanto a música aí presente. Se noutros casos, a insistência pode levar à revelação de novas dimensões, por aqui a insistência reforça o impacto. E está lá tudo, a nú e a fazer-nos uma careta. Há-que recuar ao píncaro da década de 90 para sentir uma viscelaridade semelhante. Por via das Babes In Toyland, dos Sonic Youth, dos Mudhoney ou dos Nirvana, ainda quando a dúbia nuvem do grunge se formava enquanto produto. Fale-se em revivalismo, até justificado, mas fale-se antes em devolver uma fúria ao rock, entretanto perdida – pelo menos nos moldes em causa. É certo que essa atitude se diluiu noutras estirpes e até noutros géneros; todavia, faz tempo que a mítica dinâmica power trio, baptizada por um grito de guerra feminino, não se impunha com tamanha grandeza. Mesmo que as Sleater-Kinney ou Magik Markers tivessem, com distinção, ousado tais desígnios. Na prática, os Nü Sensae resultam da lógica de caos organizado. Uma avalanche percussiva que se acotovela com a incisão da guitarra e puxa para si o mau génio do baixo, traduzindo-se nessa convivência fumegante que dá lugar ao efeito queda livre. Sem paragens contemplativas e em que o abrandamento rítmico não significa necessariamente perda de intensidade. Se em estúdio provocam uma inegável convulsão sonora, em palco suscitam uma urgência colectiva incendiária. São conhecidos por actuações únicas e os diversos vídeos espalhados pela net comprovam-no. Trata-se de uma passagem da banda sem precedentes por cá, aberta a quem não tem nada a perder ou tem tudo a ganhar. Como os grandes desafios. NA
Nü Sensae ⟡ 100 Leio
Nü Sensae
100 Leio
São necessários poucos segundos de ‘Gang$tar’ para dar de caras com um sonoro ‘foda-se!’, que o Lourenço (Nacho) atira para o meio do eco, antes de fazer as restantes apresentações de ‘Dama’, com doses iguais de respect e má onda. O primeiro álbum dos 100 Leio tinha apenas começado e já ali estava a mais importante palavra de todo o seu léxico da street: ‘foda-se’, vulgarismo tão versátil e eficaz como a fórmula do Lourenço (guitarra) e da Maria (bateria) para chegar a cada uma das suas songs. Como se sabe, o ‘foda-se’ serve igualmente para aliviar a dor de quem acabou de entalar um dedo na porta. Depois de tantas vezes entalados entre comparações com os Sebadoh e alguma condescendência ligada ao facto de serem os mais novos membros da Cafetra, os 100 Leio aproveitam ‘Gang$tar’ para uma série de ‘foda-ses’ lo-fi, cuja pontaria certeira podia ser a de umas quantas rimas dos N.W.A., em discurso directo a partir de ‘Compton’. Convenhamos também que há qualquer coisa de player (ou playa) num duo, que nos deixa geralmente à espera de mais um enxerto de reverb e letras manhosas, mas que nos surpreende depois com umas quantas songs tão doces como namorar ao domingo e gostar dos mesmíssimos cinco filmes de merda. Independentemente da referência no título do disco ser intencional ou não, a verdade é que também os Gang Starr eram dois e a dinâmica entre ambos melhorava substancialmente o jogo de cada um: as rimas do Guru só pareciam mais carregadas de realidade e rua, porque os beats do DJ Premier não esperavam sentados até que uma paisagem urbana se materializasse. A cooperação pura é uma das leis mais primárias num gangue. Talvez seja por isso que a bateria pouco refinada (mas boss) da Maria é a melhor companhia para a atitude ‘quero lá saber’ da guitarra shoegaze e flow do Nacho. Back to back. Um pelo outro. Como primos que parecem irmãos. Miguel Arsénio