Jaime Rocha ensaia uma caracterização de Ortov: “uma personagem, um espantalho, um corpo que anda e gesticula, uma ideia, um texto, um homem, uma mulher, um ser errante, um boneco, um actor, uma poltrona, um espelho, um poeta, um animal, um gravador, um saco de plástico, ou é tudo isso ao mesmo tempo? Ou será a nossa própria vida, a de nós todos, o presente inquietante, o futuro incerto, o bem e o mal?”
“O actor que se apresentará com o nome de Ortov vai relatando aos espectadores o que ouviu na casa dos vizinhos, os diálogos que eles tiveram no dia-a-dia doméstico, enquanto se justifica pelo facto de ter assassinado a mulher desse casal, mostrando com esse acto o mal-estar social em que se vive. Ao mesmo tempo que confessa este acto violento em público, promove o seu próprio julgamento com ajuda dos espectadores em frente às câmaras de televisão convidadas para o efeito. Mantém ao longo da peça uma atitude expectante. Aguarda ansiosamente a chegada dos jornalistas.”
O primeiro parágrafo do texto de “O Mal de Ortov” dá indicações precisas e o mote para o que adiante se poderá esperar desta peça de Jaime Rocha, editada em 2009. Ortov (personagem/figura que surge, há mais de uma década, em diversos textos do autor) vem assumir o crime que diz ter cometido perante a plateia de espectadores (o público real de cada apresentação do espectáculo) e uma equipa de jornalistas (personagens que serão intermitentemente evocadas por Ortov ao longo do monólogo). Por intermédio deste dispositivo simples que coloca actor e assistência em permanente relação dialógica, o dramaturgo resgata a participação do espectador solicitando-lhe que, ora se assuma como confessor/voyeur privilegiado ora interpelando-o directamente para que tome partido no julgamento público da personagem. O teatro é, assim, convocado para (re)assumir o lugar político de ágora grega, espaço onde os assuntos da polis são debatidos e decisões agónicas tomadas – neste caso, através de uma peça que, escrita com o humor negro e mordacidade que caracterizam o teatro de Jaime Rocha, nos confronta com alguns temas candentes que persistem em caracterizar o nosso tempo como, entre outros, a espectacularização dos media.