Existem coisas que nunca poderiam ser obtidas com um anúncio no jornal. Era absurdo recorrer aos classificados para procurar um “guitarrista disposto a desbundar em canções sobre passar as noites a fumar”. Além disso, ninguém responderia a tal chamada, porque nada prepara alguém para os rituais dos outros: ou os conhecemos, ou estamos fora. É tão simples quanto isso. E essa noção aplica-se aos rituais mais vulgares: mandar bitaites ao ver TV, dizer mal dos outros, falar de merdas. O tédio é um estado de espírito universal. A maneira exacta como é vivido será, por sua vez, uma das coisas que mais distingue um grupo de amigos.
O coração escreve o primeiro parágrafo, porque reconhece nas bandas da Cafetra uma capacidade muito especial: a de transformar o tédio em fabulosas canções rock e partilhá-lo depois como se fosse “uma cena de amigos para amigos”. Parece lamechas dizê-lo assim, mas há uma extrema generosidade em todas as canções que trazem cá para fora as piadas e os detalhes asquerosos sobre a vida interna da Cafetra. Num tempo em que toda a música quer ser muito importante, voltou a ser uma alegria escutar bandas que não se acham a salvação ou o supra-sumo da batata. O segredo da Cafetra é – tal como canta o tio B Fachada – “fazer mal a coisa certa” sem que isso seja um “big deal”. O próprio Jad Fair provou, no final dos anos 70, que a música podia partir dos mais toscos e nunca achou que isso fosse um “big deal”. Encontrou o ímpeto em si mesmo, e foi assim que chegou aos cinquenta belos acidentes incluídos nesse monumento lo-fi que é “1/2 Gentlemen / Not Beasts”, dos Half Japanese. O mesmo serve para dizer que o rock mais genuíno nunca aconteceu por encomenda e raramente agradou a todos. Os Passos em Volta e os Kimo Ameba , as duas bandas-nucleares da Fetra, sabem bem que a pretensão e a elaboração não fazem falta nenhuma ao rock. Os mesmos Passos em Volta que, no ano passado, lançaram um álbum (“Até morrer”) capaz de comprovar tudo o que foi escrito até aqui. Mas as mesmas coisas boas podem ser ditas sobre os Kimo Ameba, que esta noite apresentam o seu primeir disco – eles que, por sua vez, cantam letras imperceptíveis e decidiram explicar porque o fazem numa canção igualmente indecifrável. É muito engraçado ver como a voz de Nacho fica de castigo e merece apenas a mesma importância que os outros instrumentos. O fuzz mais endiabrado dos Kimo Ameba faz também com que soem a Mudhoney depois de pisar um cagalhão bem português. E isto é um elogio. Os mais recentes concertos (e os registos em vídeo) das duas bandas provam que o expoente máximo da Cafetra acontece realmente em palco. E nada desta conversa importará muito assim que, na ZDB estalarem as guitarras, a euforia pop e a despreocupação em geral. Tudo coisas impossíveis de obter com um anúncio no jornal. MA