O espaço, o sideral, aquele que se estende até ao infinito para lá da atmosfera terrestre e que só a imaginação parece, para já pelo menos, alcançar de forma plena é desde há muito uma fonte de inspiração para a música mais livre. Sun Ra acreditava ter vindo de Saturno e, na verdade, quem poderá afirmar com plena certeza que tal não aconteceu?
A verdade é que o espaço oferece uma metáfora perfeita de infinitas possibilidades, de absoluta liberdade, onde tudo é possível e, sobretudo, onde as regras que conhecemos – da física, da ciência, da sociedade – poderão ter que ser reformuladas. Rafael Toral há muito que é um dedicado explorador do espaço: o da imaginação, o que existe entre as notas, entre os conceitos de música, entre os diferentes integrantes de um ensemble, dentro dos circuitos que carregam a voltagem necessária para que os seus instrumentos ressoem.
O espaço tem-se também manifestado abundantemente nos títulos da sua vasta discografia: Saturn, trabalho gravado ao vivo em Aveiro com o baterista João Pais Filipe e lançado o ano passado, é um exemplo possível. Essa suite em três “andamentos” será agora apresentada pelos dois músicos num concerto raro na ZDB.
Saturn sucedeu a Moon Field que por sua vez era mais um registo numa discografia que se estende ainda por vários volumes de Space Elements ou Space Solos e que ainda se manifesta em projectos colectivos como o recentíssimo Space Quartet (Clean Feed, 2018) em que o baterista João Pais Filipe também participa.
Explica o próprio Rafael Toral que chegou à imagem de capa de Saturn, uma foto registada pela sonda Cassini que há duas décadas vagueia pelo espaço transmitindo preciosa informação para os cientistas na Terra, bastante depois de ter registado a música: “não tem nada que ver com Saturno, é apenas música”.
Longe de desfazer a aura de atracção mútua entre o espaço e a música mais exploratória, no entanto, a frase de Rafael Toral apenas recentra na música que aqui propõe as nossas atenções, colocando o folclore cósmico como acessório numa demanda por novos territórios sonoros que é real e concreta. Rafael Toral descreve a obra tri-partida como “uma suite live em novas direcções”. Aqui, o diálogo (duelo?) estabelece-se entre a bateria e as percussões de João Pais Filipe e os amplificadores que Rafael Toral usa como geradores de feedback juntamente com o oscilador de eléctrodos.
Os ruídos, pulsares, pequenas explosões, drones, grooves e derivas pelas mais remotas zonas da liberdade sonora que o duo congemina em Saturn podem, afinal de contas, funcionar como uma tradução possível dos insondáveis mistérios que o universo – com os seus corpos celestes, com as suas explosões solares, com as supernovas e quasars e buracos negros e forças gravitacionais e campos magnéticos – ainda reserva e que nenhum telescópio ou sonda conseguiu ainda explicar totalmente. Talvez a música seja mesmo a última fronteira, a mais avançada forma de alcançar o que a ciência ainda não conseguiu plenamente resolver.
Ou então, como concede Toral, “é apenas música”.
Na ZDB, Rafael e João vão dispensar os fatos e a nave, mas nem por isso vão certamente deixar de transportar a nossa imaginação até à órbita próxima de Saturno. Pode ser que vejamos Sun Ra por lá… na música, afinal de contas, não há impossíveis. RMA