Volvido quase um século desde o final da Segunda Guerra Mundial, as suas mazelas ecoam ainda nestes tempos como um espectro que se revolve para além da memória. Actuando num presente assustadoramente real com o regresso do facismo declarado ao poder em Itália – afinal de contas, o que era mesmo o totalitarismo fracamente dissimulado de Berlusconi? Daí que, mais do que nunca, Canti di guerra, di lavoro e d’amore de Silvia Tarozzi e Deborah Walker se revele de uma urgência e pertinência absolutas, mesmo resgatando o cancioneiro da resistência e da emancipação feminina da classe trabalhadora dos anos dessa Grande Guerra, da distância. O passado a assombrar o presente na contínua premência dessas mesmas canções, a imortalidade da folk encarnada em novas vidas, porque as lutas são (e serão?) sempre as mesmas. Revisitando esse legado precioso e pouco conhecido, Tarozzi e Walker recontextualizam a memória para a dotar de novas perspectivas, novas vivências, em oposição ao revisionismo vazio.
Artistas com estaleca nos meandros da composição moderna e da improvisação, tendo já interpretado peças de Eliane Radigue, Phil Niblock ou, com particular afinidade, Philip Corner, Tarozzi e Walker tratam com todo o carinho, saber e sensibilidade destas canções. Música que foi parte fundamental da infância de Tarozzi no meio rural do Norte de Itália e que é aqui interpretada à luz da música contemporânea mais viva, fora do mero aprumo canónico ou predatório, antes numa sinergia orgânica entre a folk e as técnicas e linguagens da improvisação e da composição moderna. Lançado já este ano na vital Unseen Worlds, editora responsável por trazer à luz de hoje a obra de Carl Stone, Laurie Spiegel ou “Blue” Gene Tyranny, Canti di guerra, di lavoro e d’amore intermeia o canto ancestral com passagens instrumentais, onde o violino de Tarozzi e o violoncelo de Walker se enredam num clamor de acordes lânguidos, como que a carregar a dor e esperança de vidas passadas e presentes, num todo de hipnose sem tempo. BS