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Sir Richard Bishop ⟡ Circuit des Yeux

sáb17.05.1422:00
Galeria Zé dos Bois


Sir Richard Bishop
Circuit des Yeux

Sir Richard Bishop

A obra deixada pelos Sun City Girls merece todos os encómios. Trouxe durante décadas, secretamente, outras tonalidades à música popular americana. Afastou-a do nacionalismo sonoro, de uma certa vulgaridade, sem a tornar demasiado sofisticada ou vaidosa. Resumindo, trouxe-lhe outros mundos, descentrou-a, recordou-lhe que os EUA foram (sempre) um país de outras músicas. Não se tratou de um acto distante ou solene. Foi uma irrupção lenta e festiva, aplaudida por jornalistas, críticos e músicos. Redescobriam-se discos, canções e até cassetes. Conhecia-se uma história feita entre duas cidades (Phoenix e Seattle) e, claro está, conheciam-se os músicos: Richard e Alan Bishop e Charles Gocher.

A Internet permitiu resgatar os Sun City Girls, com rapidez, da ameaça do esquecimento e a muito propalada new weird america revelou genealogias e descendências logo debatidas. Mas o trio nunca se deixou musealizar. Continuou a fazer música até ao falecimento de Gocher. Entretanto os dois irmãos Bishop já se afirmavam na condição de autores distintos. Alan enquanto Alvarius B, Richard lançando-se como guitarrista pela mão da Revenant Records, com o maravilhoso “Salvador Kali” (1998).

Sem menorizar a obra do irmão, tem sido a música de Richard aquela que, com mais claridade, nos religa à memória dos Sun City Girls. Não toca apenas guitarra, mas também piano ou harmónio. Não é um mero executante, é também um grande ouvinte. Dança com os primitivos do rock and roll, baila ao som de música egípcia, entrega-se aos delírios apaixonados do free-jazz. Sempre com a mesma elegância. Salvador Kali revelara já um autor maduro, delicado, que faria do fingerpicking, das referências não-ocidentais, das possibilidades oferecidas pelo estúdio, dos sons da cítara ou do movimento das cordas os elementos fundamentais de um universo musical.

Não seria o único. Nos últimos quinze anos, não faltaram instrumentistas, guitarristas, intérpretes solitários. Mas as “baladas” de Sir Richard Bishop nunca caíram sob a experimentação agressiva ou a repetição de formas e métodos. Foram sempre tomadas por uma certa cortesia, por uma necessidade de se fazer ouvir com clareza, sem sacrificar o improviso ou a inefabilidade dos sons. Mesmo nos momentos mais tensos ou agrestes, na sua música venceu sempre a empatia, o encontro, a comunicação com aqueles que o ouvem e aqueles que ele ouviu (Chet Atkins, Coltrane, Fahey, Reinhardt, os próprios Sun City Girls). No Médio Oriente, no México ou aqui, em Lisboa. A sua música é uma viagem. JM

Circuit des Yeux

Haley Fohr foi uma de muitas faces a surgir no final da década passada, quando o lado B da música contemporânea norte-americana se deixava embrenhar nos destroços após o tufão do noise e ainda conectado à bolha de ar do pós-punk e afins. Inca Ore, US Girls, Zola Jesus ou Cro Magnon acompanharam-na nessa aurora do negrume com porta aberta ao experimentalismo de resultados anímicos. Um reflexo retardado da então denominada onda New Weird America num momento em que ainda se procurava compreender muita música que chegava em simultâneo. Tempos de revelações grandiosas em que editoras como a Not Not Fun ou De Stilj se inscreveram nesse pedaço de história recente. Sensivelmente seis anos depois, uma parte significativa dessa gente acertou a bússola para outras direcções e eventualmente com destino a diferentes abordagens. Com efeito, verificaram-se duas saídas criativas comuns: a permanência na abstracção sonora (confinada ao círculo que inicialmente os viu nascer) ou a tentativa de tornar a música mais directa (mas sem cedências de maior na sua essência). De notar que a passagem do registo lo-fi para o espectro hi-fi também pesa nesta equação como elemento basilar. Este terá sido então um pouco o trajecto de Fohr enquanto Circuit Des Yeux e cujo o último ‘Overdue’ espelha por fim mais corpo e menos espírito.

Dito isto, deixe-se intocável esse condão pessoal capaz de conferir uma energia sibilina a cada canção, álbum ou actuação. Algo demasiado umbilical para não se fazer sobressair no retrato da artista. Perante a dualidade permanente entre o belo e o terrífico, vem à tona o input emocional da jovem, movido por uma singular expressividade. Palavra-chave banalizada, é certo, mas justa e perfeitamente aplicável às propriedades vocais e líricas de Fohr. As notas aleatórias de piano e os ritmos em cascata de objectos não-musicais presentes em discos como ‘Symphone’ e ‘Sirenum’ contrastam agora com uma crescente limpidez de recursos e de ambiente. O toque confessional da folk vem espreitando de esgueira e afirmando-se, pé ante pé, como ponte sólida entre o seu passado e o seu futuro. Tem sido, portanto, uma transição gradual e consciente, à qual o último disco confirma essa proximidade às canções feitas a voz e guitarra, ainda que nem por isso obtendo posição honorária. Há pois demasiada matéria a rondar o firmamento de Circuit Des Yeux, o que sugere uma recusa a lugares familiares ou outrora já habitados.

Vocalmente situada entre Nico, Diamanda Galás ou até Buffy Sainte-Marie, o veneno insinuado por tais referências cruza-se ocasionalmente com a fragilidade das composições. Noutras tantas, a robustez altiva das palavras escalam um instrumental majestoso de tons monocromáticos – uma vez mais a supracitada dualidade cosmológica a emergir na sua personalidade. Como equilíbrio, em jeito de gravidade no espaço, está o imenso poder da atonalidade. Parece unir os pontos dispersos num esboço iniciado e todavia não terminado.

Na sua recente passagem por Lisboa, durante a primeira parte do concerto de Bill Callahan no São Jorge, ficou bem clara a capacidade rara de saber preencher um palco. Sozinha, apenas munida dos seus instrumentos e do seu mundo interior, convida cada um de nós a sentir as tempestades, as ondas e as brisas que definem a sua existência. Uma elegância possante, bem mais exposta nesta noite que lhe será essencialmente exclusiva. E onde haverá, por certo, mais cortinas por abrir. NA

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