A obra deixada pelos Sun City Girls merece todos os encómios. Trouxe durante décadas, secretamente, outras tonalidades à música popular americana. Afastou-a do nacionalismo sonoro, de uma certa vulgaridade, sem a tornar demasiado sofisticada ou vaidosa. Resumindo, trouxe-lhe outros mundos, descentrou-a, recordou-lhe que os EUA foram (sempre) um país de outras músicas. Não se tratou de um acto distante ou solene. Foi uma irrupção lenta e festiva, aplaudida por jornalistas, críticos e músicos. Redescobriam-se discos, canções e até cassetes. Conhecia-se uma história feita entre duas cidades (Phoenix e Seattle) e, claro está, conheciam-se os músicos: Richard e Alan Bishop e Charles Gocher.
A Internet permitiu resgatar os Sun City Girls, com rapidez, da ameaça do esquecimento e a muito propalada new weird america revelou genealogias e descendências logo debatidas. Mas o trio nunca se deixou musealizar. Continuou a fazer música até ao falecimento de Gocher. Entretanto os dois irmãos Bishop já se afirmavam na condição de autores distintos. Alan enquanto Alvarius B, Richard lançando-se como guitarrista pela mão da Revenant Records, com o maravilhoso “Salvador Kali” (1998).
Sem menorizar a obra do irmão, tem sido a música de Richard aquela que, com mais claridade, nos religa à memória dos Sun City Girls. Não toca apenas guitarra, mas também piano ou harmónio. Não é um mero executante, é também um grande ouvinte. Dança com os primitivos do rock and roll, baila ao som de música egípcia, entrega-se aos delírios apaixonados do free-jazz. Sempre com a mesma elegância. Salvador Kali revelara já um autor maduro, delicado, que faria do fingerpicking, das referências não-ocidentais, das possibilidades oferecidas pelo estúdio, dos sons da cítara ou do movimento das cordas os elementos fundamentais de um universo musical.
Não seria o único. Nos últimos quinze anos, não faltaram instrumentistas, guitarristas, intérpretes solitários. Mas as “baladas” de Sir Richard Bishop nunca caíram sob a experimentação agressiva ou a repetição de formas e métodos. Foram sempre tomadas por uma certa cortesia, por uma necessidade de se fazer ouvir com clareza, sem sacrificar o improviso ou a inefabilidade dos sons. Mesmo nos momentos mais tensos ou agrestes, na sua música venceu sempre a empatia, o encontro, a comunicação com aqueles que o ouvem e aqueles que ele ouviu (Chet Atkins, Coltrane, Fahey, Reinhardt, os próprios Sun City Girls). No Médio Oriente, no México ou aqui, em Lisboa. A sua música é uma viagem. JM