Não é nada de novo, e o passado não nos deixa mentir, mas não deixa de ser meio evidente que nos últimos anos temos vivenciado em partes ocidentais uma espécie de acordar exponencial para as possibilidades da percussão – seja ela acústica ou processada, batida ou textura, vale tudo – em registo solitário, onde voz e função se assumem como auto-suficientes e nada lacónicas, a evocar realidades para além do show off solista da Moby Dick – a calar os aficionados do High Fidelity. Heranças multiculturais que não nos pertencem mas se imiscuem respeitosamente – esperamos – na matéria de artistas de visão e bravura. Aqui bem próximo e só nos últimos tempos tivemos obras marcantes de bateristas como João Pais Filipe, Gustavo Costa ou Gabriel Ferrandini que tomaram esse instrumento como meio fundamental para explorações de elevação sensorial e física. Ficam como exemplo de uma parte pequena mas já por si diversa de um cosmos onde gravita Will Guthrie.
Senhor já com uma larga história por trás, com discos em editoras tão ilustres como a eMego – DEP Peter Rehberg -, Black Truffle, Ipecac ou Clean Feed e colaborações com gente como Oren Ambarchi, Jean-Luc Guionnet, Mark Fell ou David Maranha. Algo que por si só é revelador de um raio de acção bem vasto, capaz de açambarcar com rigor e espírito diversas linguagens que pairam sobre o abismo no fim do rock, jazz libertador, electro-acústica e espaços transitórios. Australiano a viver em Nantes, Guthrie é tão incansável quanto meticuloso numa linguagem plural que se serve da bateria, todas as famílias da percussão, amplificação e processamento electrónico e as aplica em diversas frentes: polirritmia, técnicas extensas, drone, sampling, improvisação fogosa, batidas marciais. Sempre com vitalidade e engenho, sem enredos supérfluos ou conceptualizações brute force. Em continuidade com uma obsessão vidrada na percussão de metal de discos como Sacreé Obsession, Nist Nah lançado em 2020, parte de um fascínio e estudo in loco em torno do gamelão indonésio em diversas cartografias, para daí chegar a música de hipnose que amealha todas essas experiências passadas em peças de elevação com pulso rítmico, totalidade tímbrica e lirismo. Já no ano passado, a segunda parte de People Pleaser continua a operar num campo de composição viva, em temas curtos onde o sampling, as gravações de campo e (claro) as batidas tanto devem a J Dilla ou Madlib como às colagens alucinatórias de People Like Us ou Thomas Rechion. Pelo meio, discos colaborativos com Jean-Luc Guionnet e James Rushford, e tudo a fazer sentido no meio desse turbilhão de actividade em contracorrente com estes dias. Percussão suprema. BS