Reaparecido com o estrilho acústico de ‘A New Way to Pay Old Debts’ vindo dos nenhures de um silêncio de 12 anos após a dissolução de Harry Pussy em 1997, Bill Orcutt tem desde então agilizado com fé inabalável uma obra generosa e contundente. Desse período selvático na década de 90 ao lado de Adris Hoyos, a desarrumar os cânones do rock para daí chegarem a um vortex electrificado que era e não era simultaneamente blues, noise, free jazz ou punk, Orcutt seguiu com o natural avanço da idade esse drive, nervo e intuição para chegar a novas formas – de acertar contas com o passado? Passado que o próprio reconhece e admira com total impunidade e saber apaixonado, dos blues primordiais de Robert Johnson ou Mississipi Fred McDowell e sua sequência enviesada na American Primitive de John Fahey, do jazz mais lírico de Jim Hall ao fogo infinito de Sonny Sharrock à liberdade absoluta de Derek Bailey ou as guinadas de Zoot Horn Rollo da Magic Band – isto, sem sair da guitarra, que este mapa não se esgota, obviamente, no instrumento e Glenn Gould, Albert Ayler ou Cecil Taylor podiam também ser invocados. Porque toda esta cartografia possível se esbate e traduz de forma vivida numa linguagem profundamente sua. Mesmo, mesmo sua. Caso raríssimo.
Descartando a inicialmente a electricidade para atacar as quatro cordas de uma velinha Kay acústica nas suas deambulações solitárias, calcadas para a eternidade em discos como ‘How the Thing Sings’, inúmeros 7″ na sua Palilalia, na revisitação inquisitiva e pessoalíssima do cancioneiro tradicional americano de ‘A History of Every One’ ou na beleza laid back de ‘Jump On It’, Orcutt tem vindo desde então a dilatar a sua expressão com o regresso à guitarra eléctrica, colaborações incendiárias com nomes como Chris Corsano ou Michael Morley e um punhado de discos gravados com recurso a um software desenvolvido pelo próprio chamado Cracked que dão vida ao minimalismo da escola Steve Reich/Philip Glass partindo da iconografia rock no seu estado mais primário – o “1, 2 3, 4, 5, 6” de Joey Ramone em ‘A Mechanical Joey’ e o riff inicial de ‘Louie Louie’ na versão dos Kingsmen em ‘The Four Louie’ – para fazer disso hipnose. Minimalismo que deu também mote para um celebrado quarteto de guitarras com Ava Mendoza, Shane Parish e Wendy Eisenberg – a actuação no Tiny Desk é bem reveladora; dica – nascido do encontro desse software com a guitarra em ‘Music for Four Guitars’. Marcando de modo mais vincado o seu regresso à guitarra eléctrica após estrépito lindo e meio lo-fi de ‘Gerty Loves Pussy’, o álbum homónimo de 2017 manifesta novamente a sua obsessão e questionamento do repertório popular americano através de uma leitura com tanto de lírico como de frémito. Apaixonada. Marca de um ofício que é agora continuado com criações suas em ‘Another Perfect Day’, captado com toda a clareza e calor humano no Cafe OTO em Londres. Como só pode ser para uma música sempre tão sentida e revelatória. De mestre.
BS



