Baahahal
Baaaaahh
Ah ah ah ah
Há papel para isto tudo?
O aço é duro
O osso é mole
Só sobrou cascalho
O pilim virou pudim
Nem cheta restou
Do restolho ao olho
O cascalho no fogo
E o cão?
ITA Ita ufa UFO
Do Ouro aos Deuses, da Matéria à Arte
O capítulo 32 do livro do Êxodo conta como o povo de Israel, preocupado com a ausência prolongada de Moisés na montanha, foi ter com o seu irmão Aarão e pediu-lhe que fizesse “deuses” para que “fossem à frente” e guiassem o povo. Aarão pediu então ao povo de Israel que entregasse os brincos de ouro que tinham trazido do Egito e usou-os para fazer um “bezerro fundido”. Depois construiu um altar e fez banquetes. Mas Deus, no monte, viu tudo e ordenou a Moisés que descesse e castigasse o povo por ter desobedecido ao segundo mandamento (não fazer imagens nem prestar-lhes culto). Na sua fúria, Moisés queimou o bezerro, moeu-o até ficar em pó e deitou-o na água, que depois deu a beber ao povo. Quando questionado por Moisés sobre as suas acções, Aarão começou por culpar o povo, que disse ser “inclinado para o mal”, mas depois afirmou que a imagem se tinha feito a si própria: ele limitou-se a atirar o ouro para o fogo, “e saiu este bezerro”.
Confrontados com a ausência da divindade e de um mediador, e na procura por uma presença e visibilidade divina, ou uma imagem que lhe servisse de acesso, Aarão e o povo constroem o bezerro através de um processo de “conversão de valores”, a partir do ouro ganho no Egipto. Na falta de uma imagem do Deus de Moisés, o povo recorreu a uma representação tradicional de uma das divindades dos seus vizinhos cananeus, Baal (cuja palavra significa Senhor, Dono), que foi representado como um bezerro. O “frenesim do visível” revela a inviabilidade da obediência ao segundo mandamento. Sem uma imagem, como chegar à verdade?
No segundo capítulo do seu Tratado Teológico-Político (1670), Spinoza aborda a questão da “forma” das revelações de Deus aos profetas. Segundo o filósofo, “Deus só é revelado aos profetas de acordo com o teor da sua própria imaginação”. Havia uma correlação entre o tipo de imagens reveladas e a capacidade do profeta para as receber: “Se o profeta era um homem do campo, eram bois, vacas, etc. que lhe eram representados; se era um soldado, generais e exércitos; e se era um cortesão, um trono real e semelhantes.[1] No caso de Moisés, como não tinha nenhuma imagem de Deus formada no seu cérebro, Deus não lhe apareceu sob nenhuma forma quando Moisés lhe pediu para se deixar ver.
E como acreditava que Deus estava no céu, Deus revelou-se a ele descendo do céu sobre a montanha. Por isso, e porque era algo limitado no seu imaginário, Moisés teve de subir à montanha para falar com Deus, “o que não teria tido necessidade de fazer se tivesse podido imaginar Deus prontamente em todo o lado”.[2] A partir daqui, Espinosa conclui que os profetas não sabiam mais do que os outros homens e que as formas que as revelações tomavam eram de certo modo “irrelevantes”, pois eram apenas maneiras de acolher, através da imaginação humana, uma simples mensagem de Deus.
Seguindo este raciocínio, as palavras e imagens proferidas pelos profetas não revelam uma verdade sobre Deus; revelam-se como construções. Apesar da sua pretensão de revelação, estas imagens estavam repletas de incerteza. É por isso que os profetas pediam frequentemente um “sinal” que lhes garantisse que estavam a falar com o “verdadeiro” Deus. Esta é uma das faces da “aporia da representação” que Fernando Gil aborda na sua Mimesis e Negação (1984): a objetividade e a verdade de uma representação são postas em causa pela atividade construtiva do sujeito.
O bezerro de ouro é um episódio clássico onde se pode testemunhar a tensão entre poder, representação e matéria, e a coexistência de extremos num mesmo objecto: a criação de imagens e a sua destruição, o visível e o invisível, o material e o imaterial, o animado e o inerte. O que é inaceitável aos olhos de Deus e de Moisés (e sedutor para os outros) é o facto de a imagem do bezerro não só representar a divindade como ser ela própria “carne divina”[3] – ’faz de nós deuses”, disse o povo a Aarão. O bezerro é sagrado não porque representa Deus ou porque é feito de ouro, mas porque é uma imagem divina. A imagem é tão poderosa que concorre com Deus como um seu rival. A sua materialidade consegue tornar visível o que supostamente seria invisível, consegue tornar presente a divindade. É esse paradoxo de concreto e abstracto que caracteriza também a arte.
Uma intervenção Pizz Buiniana nesta história só podia provocar a intrusão de uma gargalhada, uma espécie de glitch na palavra Baal, deus dos cananeus representado como um bezerro. Pizz Buin pode cair na tentação idolátrica, mas fá-lo através de um “iconoclash”, um lugar ambíguo de destruição/criação: a imagem pode reinventar-se a si mesma e reproduzir-se como imagem tendo por base a destruição da própria imagem.
As peças apresentadas em Baahahal fundem o ouro de todos nós numa forma em permanente busca tangível por uma imagem. Tal como o bezerro, elas tanto se apresentam como criadas por mãos humanas como feitas por si mesmas. O disforme aqui não é uma negação da forma, se o for é da forma anterior. É antes uma afirmação da forma como processo a meio caminho de uma imagem por vir. É a matéria na sua potência autopoiética – é o excesso da matéria a transbordar para fora de si mesma, a constituir-se em imagem e suporte ao mesmo tempo.
Em Baahahal, propõe-se a veneração de uma forma que vive do disforme, um totem de corpos irreconhecíveis. Aqui é a própria obra que instaura um espaço de procura de uma imagem em potência. Uma imagem-que-foi transformada agora numa imagem-ainda-a-ser, ou numa “arte ainda por vir” atingida já pela fúria do impacto da sua aparição. Só concedendo à matéria a liberdade de passar por todas as formas possíveis é que se pode aspirar a ir “para além” da matéria. “Para além da matéria” é um ‘antes da forma’, uma forma em constante criação/destruição.
Trata-se de uma inversão do processo alquímico, um modo de trabalho através do qual se devolve às matérias-primas o seu carácter inacabado, a potência criativa visível que possuem enquanto Matéria. O fogo criador gera neste caso um processo de desdiferenciação, uma regressão a um estádio anterior que permite à matéria transformar-se ela mesma numa outra coisa – um processo de devir-outro que está em permanente acontecimento.
Estas peças apontam para uma possibilidade de coexistência simultânea da multiplicidade de formas, para uma unidade da matéria, que encontra algum paralelismo nos vários “totens de conceitos” em forma de montanha que povoam a mais recente publicação pizzbuiniana, Calhamaço (2023). Empilhados entre a base e o topo destas montanhas de conceitos que repousam uns sobre os outros, podemos encontrar, por exemplo, “ver”, “acreditar”, “aparecer”, “fé”, “tecnologia”, “coisas soltas”, “histórias colectivas”, “comunidade” … Nesta publicação, encontramos também uma profusão de imagens de estátuas, Vénus, Marias, Colossos, ou verracos proto-históricos, com os seus pedaços e membros espalhados pelas páginas, entre o bibelô e a quimera.
As formas podem variar, mas os bezerros de ouro permanecem ainda hoje e as imagens irão sempre “adiante” de nós como guias. Podemos perguntar-nos, como nas primeiras páginas de Calhamaço, “A que altura da montanha estamos? / Queremos subir / Ou queremos descer? / Andar à volta / Trazer um mapa? Ou fazer um mapa?“, porque ‘Há muitas montanhas, seu tolo’[4], mas nem todas têm deuses.
A cada um a sua própria montanha.
Texto de Liz Vahia escrito a propósito da exposição Baahahal, de Pizz Buin, apresentada no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra.
A autora não segue o Acordo Ortográfico em vigor.
Texto de Liz Vahia escrito a propósito da exposição Baahahal, de Pizz Buin, apresentada no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra.
A autora não segue o Acordo Ortográfico em vigor.
[1]Benedict De Spinoza. (2015). Theological-political treatise (p. 30). Cambridge University Press.
[2]Ibidem, p. 38.
[3]No poema O Penúltimo Poema, Alberto Caeiro escreve que a anima de Deus é o seu próprio corpo: “Para eles o corpo é a alma / E têm consciência na sua própria carne divina”. Pessoa, F. (2007). The collected poems of Alberto Caeiro (C. Daniels, Trans.; p. 153). Shearsman.
[4]Pizz Buin (2023), Calhamaço, Stolen Books, np.