Existem dois tipos de canções: aquelas que tratam de alguma coisa e as outras que tratam de nada. De entre os recentes contributos prestados pela canção escrita em português destaca-se a capacidade de desmascarar a parceira de expressão inglesa que também se faz por cá. Vivemos demasiado tempo sujeitos a letras sobre a sushi girl que andava de scooter, ou sobre a vizinha skater do quarto andar – dois exemplos de como algumas letras em inglês, pensadas por tugas, conseguem ser bastante vagas e pouco cativantes. Isto não é assim tão surpreendente se entendermos que as sensações (e as situações) vividas em inglês apenas podem ser apropriadas por empréstimo. Não são definitivamente nossas. Pela mesma tabela, o conjunto de questões que um rapaz londrino aponta à sua vida nunca será o mesmo que um jovem lisboeta coloca a si próprio. Serão provavelmente semelhantes, na sua natureza, mas cada um necessita das suas próprias palavras. O Éme canta com propriedade sobre o universo que cabe nas nove canções de “Gancia” – uma palavra com um significado muito particular que surgiu em conspiração com os seus amigos da Cafetra Records. Tentando aqui uma interpretação livre, diríamos que “Gancia” será tudo o que há de sábio, carismático e afável nos pêlos que ocupam o rosto de um homem. A “Gancia” nasce com cada um e é tão intransmissível como o são estas canções que apenas podem pertencer a Éme. Depois do EP “Passa-se alguma coisa estranha aqui”, “Gancia” documenta o momento em que João Marcelo (o Éme) se chega à frente para um auto-retrato repleto de férteis conjugações de folk livre e de uma twee com a barba espalhada pelo açúcar. Ao revelar as expectativas e os receios pessoais do Marcelo – sem o calculismo de outros compositores – esta fornada de canções ganha a mesma íntimidade que fotografias de duas pessoas quando, por acidente, caem nas mãos de outras. A “Gancia” do Éme é também todo aquele gosto que as mãos e a voz ganham pelo ofício folk assim que há uma guitarra e uma história por contar. Além disso, há por aqui aquela vontade genuína de quem quer filmar um remake do “Matrix” com um orçamento de 4 euros, se isso for necessário. Na noite em que apresenta o disco na ZDB, o Éme virá acompanhado por um contingente da Cafetra Records, desta vez formado pelas Pega Monstro, os intrigantes Go Suck a Fuck e Smiley Face. Serão cada vez menos as dúvidas de que esta malta está a compor algumas das mais inteligentes canções melódicas feitas por cá ultimamente, enquanto pinta um bigode amarelo na cara da seriedade e das pessoas sem graça. Este é o dia certo para vir tirar isso a limpo. MA