O que fazer com as pedras extraídas das pedreiras? Podem ser utilizadas para erguer monumentos maciços de poder e glória, como o que Salazar ergueu ao longo do rio Tejo para celebrar os conquistadores do Império Português. Ou podem ser dispostos horizontalmente em pequenos fragmentos a preto e branco para desenhar todo o tipo de formas e figuras. Ellie Ga coloca esta oposição no centro do seu filme e escolhe claramente o seu lado: o dos trabalhadores das calçadas de Lisboa e do seu ofício em vias de desaparecimento. Quarries utiliza o mesmo método de Gyres (exibido na ZDB, em 2021): o ecrã é como uma mesa de luz em três partes, as mãos e a voz da artista são as suas ferramentas para uma performance de pensamento coreografado. O movimento das imagens que vêm, vão, deslizam, são justapostas ou sobrepostas, corresponde ao ritmo do seu discurso. Tudo é aplanado, confiado à navegação do pensamento, ou a uma simples enunciação de factos expressa numa voz monótona – tal como as mãos distribuem calmamente as imagens, ou Jorge, o artesão da calçada, organiza as pedras pretas e brancas. Enquanto Gyres navega em alto mar, levado pelas correntes oceânicas, Quarries centra-se nas mãos das pessoas e na utilização das pedras pelas pessoas ao longo dos tempos. O seu trabalho liga a investigação científica impessoal e o drama pessoal, uma vez que a sua relação com o irmão paralisado é transformada no refrão do filme, como um ponto de partida ao qual a história regressa constantemente. A mão do Homo sapiens esculpida pelas ferramentas, a mão deficiente do irmão, o garfo que cai das mãos gastas do calceteiro. O que está Ellie Ga a fazer? Está a criar uma contra-História: o espírito de resistência à glória do poder, da força e da conquista exprime-se no seu cuidado e ternura pela fraqueza, pelo erro e pelo descuido.
Baseado num texto de Cyril Neyrat
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Ellie sobre Karin
Quando cheguei a Lisboa para uma residência em 2019, já tinha passado vários anos a recolher material sobre a relação da mão com a pedra. Sentia-me um pouco envergonhada por contar aos lisboetas a minha crescente obsessão pela calçada. Que turista! Mas quanto mais aprendia sobre a história da calçada, mais olhava e compreendia a calçada como uma espécie de pedra filosofal, onde podemos traçar múltiplas narrativas que conduzem ao trabalho forçado, à colonização, ao conhecimento à beira da obsolescência e ao gesto humilde de deixar uma marca perante o anonimato.
Trazia comigo um livro enorme, esgotado, demasiado pesado para ser usado como guia de campo e que, no entanto, oferecia itinerários pormenorizados da Lisboa de 1983 (Empedrados artísticos de Lisboa). Perguntei-me sobre a fotógrafa Karin Monteiro, quem seria ela, em que estaria a pensar, de cabeça baixa a fotografar o chão e a percorrer a cidade. Através de uma série extraordinária de coincidências, fiquei amiga de Karin Monteiro. Iniciámos uma correspondência que se tornou uma das histórias tecidas no meu filme Quarries. Através da nossa correspondência, fiquei a conhecer o seu trabalho fotográfico em Moçambique e Portugal, que se estendeu por várias décadas. Quando finalmente tive a oportunidade de a visitar (na altura ela estava em Sintra), fiquei radiante ao ver as prateleiras do seu escritório cheias de caixas de negativos, incluindo os negativos para o livro Empedrados. Uma conversa levou a outra e, em dezembro de 2024, Karin doou grande parte do seu espólio ao Arquivo Municipal. Esta é a primeira exposição em Lisboa baseada neste trabalho. A Karin, que vive atualmente em Maputo, escreveu-me na semana passada para dizer que queria que as pessoas soubessem que as fotografias que eu e o Natxo selecionámos para esta exposição eram, para ela, uma metáfora do desmoronamento do império.